IGREJA CATÓLICA

Cardeais enviam dúvidas ao papa sobre união homossexual, ordenação de mulheres e outros temas de doutrina; entenda

Rhuan C. Soletti · 2 de Outubro de 2023 às 15:08 ·

Declarações recentes feitas por prelados de alta hierarquia, abertamente contrárias à doutrina constante e disciplina da Igreja, motivaram a "dubia". Essa prática de "inquisitorial" ganhou destaque durante o pontificado atual

Cinco cardeais do Vaticano enviaram um conjunto de perguntas cruciais ao Papa Francisco expressando preocupações e buscando esclarecimentos sobre questões de doutrina e disciplina. O movimento ocorre às vésperas da abertura do tão aguardado Sínodo da Sinodalidade. As áreas de preocupação incluem desenvolvimento doutrinário, bênção da união entre pessoas do mesmo sexo, autoridade do Sínodo sobre a Sinodalidade, ordenação de mulheres e absolvição sacramental.

Em comunicado oficial intitulado "Notificação aos Fiéis de Cristo", desta segunda-feira (2), os cardeais explicaram o motivo por trás de sua decisão de enviar as "dubia"– forma plural de "dubium", que significa "dúvida" em latim. Veja quem assinou o documento:

  • O cardeal alemão Walter Brandmüller, 94 anos, presidente do Pontifício Comitê para as Ciências Históricas; 
  • O cardeal americano Raymond Burke, 75 anos, prefeito emérito da Assinatura Apostólica; 
  • O cardeal chinês Zen Ze-Kiun, 90 anos, bispo emérito de Hong Kong; 
  • O cardeal mexicano Juan Sandoval Íñiguez, 90 anos, arcebispo emérito de Guadalajara e;
  • O cardeal guineense Robert Sarah, 78 anos, prefeito emérito do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Os cardeais foram motivados por uma série de declarações feitas por prelados de alta hierarquia em relação ao próximo Sínodo, declarações essas que foram consideradas "abertamente contrárias à doutrina constante e disciplina da Igreja".

Essas afirmações, segundo os cardeais, provocaram e continuam a provocar grande confusão e erros entre os fiéis e pessoas de boa vontade. Portanto, sentiram a necessidade de expressar suas preocupações ao Pontífice Romano.

As cinco perguntas foram enviadas pelos cardeais em 21 de agosto, abordando essa série de tópicos sensíveis que têm gerado debates e discussões profundas dentro da Igreja. Até o momento da publicação, eles afirmaram que ainda não haviam recebido qualquer resposta do Papa às suas perguntas reformuladas em agosto.

As perguntas formais foram apresentadas ao Papa e ao Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) com o objetivo de obter respostas claras e diretas. Os cardeais, por padrão histórico, exigiam respostas limitadas a "sim" ou "não", sem incluir argumentação teológica complexa – o que não é obrigação do Papa. Essas questões são tradicionalmente elaboradas por cardeais e outros membros de alto escalão da Igreja, com a finalidade de buscar esclarecimentos sobre questões de doutrina e ensinamentos da fé católica.


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Nova tentativa

Os cardeais revelaram que haviam submetido uma versão anterior das "dubia" no dia 10 de julho, tendo recebido uma resposta do Papa Francisco já no dia seguinte. No entanto, destacaram que as respostas fornecidas pelo Papa não seguiram o padrão usual de simples "sim" ou "não", mas foram extensas e cheias de argumentação. Isso os levou a apresentar um pedido de esclarecimento revisado.

Em suas declarações ao National Catholic Register, os cardeais explicaram que as respostas do Papa Francisco "não dissiparam as dúvidas que eles levantaram, mas, pelo contrário, as aprofundaram". Diante dessa situação, eles sentiram a necessidade de reformular suas perguntas em 21 de agosto, tornando-as mais diretas, na esperança de obter as “responsa” limitadas em "sim" ou "não" – um meio de extrair posições definitivas do Papa.

Os cardeais destacaram que a iniciativa está em conformidade com o Cânon 212 § 3º, que estabelece o dever de todos os fiéis manifestar suas opiniões aos pastores sagrados sobre questões relacionadas ao bem da Igreja:

Cânon 212 § 3º: "Os fiéis, segundo a ciência, a competência e a proeminência de que desfrutam têm o direito e mesmo, por vezes, o dever de manifestar aos sagrados Pastores a sua opinião acerca das coisas atinentes ao bem da Igreja, e de a exporem aos restantes fiéis, salva a integridade da fé e dos costumes, a reverência devida aos Pastores, e tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas."

É importante notar que a prática de emitir "dubia" ganhou destaque durante o pontificado atual. Em 2016, os Cardeais Burke e Brandmüller, juntamente com os falecidos Cardeais Carlo Caffarra e Joachim Meisner, submeteram um conjunto de cinco "dubium" ao Papa Francisco em busca de esclarecimentos sobre a interpretação da exortação apostólica Amoris Laetitia, especialmente no que diz respeito à admissão de católicos divorciados e “recasados” aos sacramentos. No entanto, eles não receberam respostas diretas às suas perguntas.

Em 2021, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma "responsa ad dubium" que respondeu simplesmente "não" a uma pergunta sobre se a Igreja tem o poder de abençoar uniões entre pessoas do mesmo sexo. No mesmo ano, o Dicastério para o Culto Divino também emitiu uma "responsa ad dubia" sobre várias questões relacionadas à implementação dos Custódios Traditionis, o motu proprio do Papa Francisco que restringe a Missa Tradicional em Latim.

No início deste ano, em janeiro, o Padre Jesuíta James Martin dirigiu diretamente ao Papa Francisco um conjunto de três "dubium", buscando esclarecimentos sobre os comentários feitos pelo Santo Padre à Associated Press sobre a questão da homossexualidade. O Papa Francisco respondeu às perguntas com uma carta manuscrita apenas dois dias depois. 

 

Todas as perguntas

1º DUBIUM:

“Pergunta-se se, na Igreja, a Revelação Divina deve ser “reinterpretada” segundo as mudanças culturais do nosso tempo e segundo a nova visão antropológica que tais mudanças promovem; ou se a Revelação Divina é vinculante para sempre, imutável e que, portanto, não é de se contradizer, de acordo com o ditame do Concílio Vaticano II de que a Deus que revela é devida «a obediência da fé» (Dei Verbum 5); que o que é revelado para a salvação de todos deve permanecer para sempre «íntegro» e vivo, e deve ser «transmitido a todas as gerações» (7); e que o progresso da compreensão não implica qualquer mudança da verdade das coisas e das palavras, porque a fé foi transmitida «duma vez para sempre» (8), e o Magistério não é superior à palavra de Deus, mas ensina apenas o que foi transmitido (10).

Em resposta, o Papa Francisco, em 11 de julho, afirmou que a Igreja poderia aprofundar sua compreensão do depósito da fé, mas os cardeais consideraram que essa resposta não abordava suas preocupações essenciais. Eles reiteraram a inquietação de que algumas vozes argumentavam que as mudanças culturais e antropológicas deveriam levar a Igreja a ensinar doutrinas opostas às suas crenças tradicionais, abrangendo questões centrais para a salvação, como a confissão de fé, critérios para receber os sacramentos e a observância da lei moral.

REFORMULAÇÃO:

“A Igreja tem a capacidade de ensinar doutrinas que contrariam aquelas que foram ensinadas anteriormente em questões de fé e moral, seja por meio de declarações papais ex cathedra, definições de Concílios Ecumênicos ou pelo magistério ordinário universal dos bispos em todo o mundo, conforme descrito na Lumen Gentium, 25?”

2º DUBIUM:

“Pode a Igreja derrogar este "princípio" [negar adiferença sexual é consequência da negação do Criador], considerando-o, em contraste com o que ensina Veritatis splendor 103, como um simples ideal, e aceitando como "bem possível" situações objectivamente pecaminosas, como as uniões com pessoas do mesmo sexo, sem assim atentar contra a doutrina revelada?”

Eles sublinharam o ensinamento da Igreja baseado na revelação divina e nas Escrituras de que “Deus criou o homem à sua imagem, homem e mulher” (Gênesis 1:27), e o ensinamento de São Paulo de que negar a diferença sexual é a consequência da negação do Criador (Romanos 1:24-32). Eles então perguntaram ao papa se a Igreja pode se desviar de tal ensinamento e aceitar “como um ‘bem possível’ situações objetivamente pecaminosas, como as uniões entre pessoas do mesmo sexo, sem trair a doutrina revelada?”

O papa respondeu, disseram os cardeais, dizendo que equiparar o casamento à bênção de casais do mesmo sexo causaria confusão e, portanto, deveria ser evitado. Mas os cardeais disseram que a sua preocupação é diferente, nomeadamente “que a bênção dos casais do mesmo sexo possa criar confusão em qualquer caso, não só porque pode fazê-los parecer análogos ao casamento, mas também porque os actos homossexuais seriam apresentados praticamente como um bem, ou pelo menos como o bem possível que Deus pede às pessoas no seu caminho em direção a Ele”.

REFORMULAÇÃO:

“É possível que, em algumas circunstâncias, um pastor possa abençoar uniões entre pessoas homossexuais, sugerindo assim que o comportamento homossexual em si não seria contrário à lei de Deus e à jornada da pessoa em direção a Deus? Associada a esta questão está a necessidade de levantar outra: o ensinamento sustentado pelo magistério ordinário universal, de que todo ato sexual fora do casamento, e em particular os atos homossexuais, constitui um pecado objetivamente grave contra a lei de Deus, independentemente das circunstâncias em que ocorre e da intenção com que é realizado, continua a ser válido?”

3º DUBIUM:

Os cardeais perguntaram se a sinodalidade pode ser o critério mais elevado de governo da Igreja sem comprometer “a sua ordem constitutiva desejada pelo seu Fundador”, dado que o Sínodo dos Bispos não representa o colégio dos bispos, mas é “apenas um órgão consultivo do papa.”

“A sinodalidade pode ser o supremo critério regulador do governo permanente da Igreja sem assim se convulsionar a sua configuração constitutiva tal como foi querida pelo seu Fundador, e segundo a qual a autoridade suprema e plena da Igreja há-de ser exercida tanto pelo Papa, em virtude do seu ofício, como pelo colégio dos bispos juntamente com a sua cabeça, o Romano Pontífice (Lumen gentium 22)?”

REFORMULAÇÃO:

Os cardeais disseram que o Papa Francisco respondeu insistindo numa “dimensão sinodal para a Igreja” que inclua todos os fiéis leigos, mas os cardeais disseram que estão preocupados com o fato de a “sinodalidade” estar a ser apresentada como se “representasse a autoridade suprema da Igreja”. Por isso, procuraram esclarecer se o Sínodo pode atuar como autoridade suprema em questões cruciais. As suas dubium reformuladas perguntavam: 

“O Sínodo dos Bispos, que se realizará em Roma, e que inclui apenas uma representação escolhida de pastores e fiéis, exercerá, nas questões doutrinais ou pastorais sobre as quais será chamado a exprimir-se, a autoridade suprema de a Igreja, que pertence exclusivamente ao Romano Pontífice e, una cum capite suo, ao colégio dos bispos (cf. cân. 336 C.I.C.)?”

4º DUBIUM:

“No seguimento das afirmações de alguns prelados, que não foram corrigidas nem retratadas, segundo as quais, com o Concílio Vaticano II, teria mudado a teologia da Igreja e o significado da Missa, pergunta-se se ainda é válido o ditame do Concílio Vaticano II de que "o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial difere essencialmente e não apenas em grau" (Lumen gentium 10) e de que os presbíteros, em virtude do «sagrado poder da Ordem para oferecer o Sacrifício e perdoar pecados» (Presbyterorum Ordinis 2), agem em nome e na pessoa de Cristo mediador, e por meio dele torna-se perfeito o sacrifício espiritual dos fiéis? Pergunta-se, além disso, se ainda é válido o ensinamento da carta apostólica de São João Paulo II Ordinatio sacerdotalis, que ensina como verdade a ser mantida de forma definitiva a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, pelo que este ensinamento já não está sujeito a mudança nem à livre discussão de pastores ou teólogos”

REFORMULAÇÃO:

“A Igreja no futuro poderia ter a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, contradizendo assim a reserva exclusiva deste sacramento aos homens batizados, o que é considerado parte essencial da substância do Sacramento da Ordem e que a Igreja não pode alterar?”

5º DUBIUM: 

A última dúvida apresentada estava relacionada à frequente afirmação do Santo Padre de que existe um dever de absolver a todos, independentemente do arrependimento, a fim de que o arrependimento não seja uma condição necessária para a absolvição sacramental. Os cardeais questionaram se a contrição do penitente ainda é necessária para que a confissão sacramental seja válida, ou se o sacerdote deve adiar a absolvição quando fica claro que essa condição não é atendida.

“Pergunta-se se ainda está em vigor o ensinamento do Concílio de Trento segundo o qual, para a validade da confissão sacramental, é necessária a contrição do penitente, que consiste em detestar o pecado cometido com o propósito de não pecar mais (Sessão XIV, Capítulo IV: DH 1676), de modo que o sacerdote deve adiar a absolvição quando for claro que esta condição não está cumprida.”

REFORMULAÇÃO:

"Pode um penitente que, embora admitindo um pecado, se recusa, de qualquer forma, a manifestar a intenção de não cometer novamente esse pecado, receber a absolvição sacramental de forma válida?

 

O Sínodo

Um dos encontros mais importantes na longa história da Igreja Católica será realizado em outubro, e muitas controvérsias estão em jogo. O Papa Francisco iniciará a terceira e última assembléia consecutiva do Sínodo dos Bispos, também chamado de Sínodo da Sinodalidade, para considerar questões que têm o potencial de mudar o curso do catolicismo.

O ponto principal de preocupação deste Sínodo, para muitos, é justamente sua finalidade principal: o aumento da “sinodalidade” na Igreja, de maneira “ecumênica” ao extremo. Uma igreja sinodal seria uma igreja que opera com um sistema de governo ou estrutura eclesiástica baseada em decisões tomadas por meio de assembleias ou concílios de líderes eclesiásticos, representantes leigos e, às vezes, membros do clero. Essas assembleias são conhecidas como sínodos ou concílios.

A sinodalidade em si não é o problema: o problema, para os críticos, é o caráter da possibilidade de votação por parte de não-bispos, leigos, religiosos etc. O Papa Francisco escolheu, por exemplo, 364 membros votantes para a etapa universal, em outubro. Aqui a “sinodalidade” começou a apresentar sua “mutação”, já que pela primeira vez na história religiosos e leigos terão poder de voto ao lado dos bispos. A assembleia total será composta por mais de 400 pessoas.

No fim da segunda etapa da Assembléia (continental), encerrada neste ano, o Papa pediu a nomeação de cinco mulheres consagradas e cinco homens consagrados para o Sínodo, além de 70 fiéis não-bispos de uma lista de 150 proposta pelos órgãos continentais. Pela primeira vez, teremos não-bispos entre os delegados do presidente. Como justificativa para essa temeridade, eles enfatizam que que o processo do Sínodo não funciona como um parlamento, mas se baseia em “fidelidade ao Espírito Santo e comunhão ao serviço da Igreja”.

Confira aqui a matéria completa sobre o Sínodo da Sinodalidade.

 

Quem são

O cardeal alemão Walter Brandmüller, 94 anos, presidente do Pontifício Comitê para as Ciências Históricas / Internet
O cardeal americano Raymond Burke, 75 anos, prefeito emérito da Assinatura Apostólica / Wikipedia
O cardeal chinês Zen Ze-Kiun, 90 anos, bispo emérito de Hong Kong / Wikipedia
O cardeal mexicano Juan Sandoval Íñiguez, 90 anos, arcebispo emérito de Guadalajara / Wikipedia
O cardeal guineense Robert Sarah, 78 anos, prefeito emérito do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos / Wikipedia

 

Dubia na íntegra

 

Reformulada:


Veja mais

 


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