DIÁRIO DE UM CRONISTA

Ex-herói — A terceira morte de Sergio Moro

Paulo Briguet · 22 de Maio de 2024 às 15:17 ·

Um gato morre sete vezes, um traidor morre três. Ou: A melancólica trajetória de um ex-herói brasileiro

“Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te.”
(Apocalipse 3, 15-16)

Sergio Moro é o tipo mais melancólico dos heróis: o ex-herói. O vilão e o anti-herói têm o seu público; o covarde às vezes merece compaixão; o pobre-diabo, esse herói sem nenhum caráter que encontramos na literatura brasileira, desperta-nos alguma simpatia. Não é assim com o ex-herói; tudo que ele inspira é o desprezo, a chacota, a irrisão. Ex-herói é aquele que um dia nos deu alguma esperança e pareceu merecer o nosso elogio, mas falhou miseravelmente. Há um verso de Manuel Bandeira que poderia ser aplicado ao ex-herói, como frase lapidar: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

O ex-herói representa as mentiras em que acreditamos durante certo tempo, e que ao serem desfeitas abriram feridas em nossa alma. Ao contemplarmos a figura do ex-herói, essas cicatrizes da desilusão voltam a doer, e por isso a sua presença nos é insalubre. Ele perfaz a imagem dos nossos erros, da nossa burrice, da nossa ingenuidade. O olhar do ex-herói é uma fresta por onde passa a luz sombria do Pecado Original; seu sorriso faz lembrar a roda dos escarnecedores; sua voz fina traz notícias do reino das trevas.

Se herói é aquele cujos feitos não podem ser revogados pela morte, o ex-herói é aquele cuja morte revoga todos os seus feitos. Se herói é aquele que entrega a própria vida em sacrifício pelos outros, ex-herói é aquele que sacrifica os outros para garantir sua própria vida. Se herói é aquele que desce aos infernos e ascende aos céus, ex-herói é aquele promete os céus e entrega o inferno.

O antônimo de herói não é bandido é ex-herói. Porque do bandido nós nunca esperamos nada, só o pior; e, portanto, tomamos as devidas precauções para dele nos protegermos. Com o ex-herói acontece diferente: dele, um dia, nós esperamos alguma coisa. O famigerado prefixo ex vem da antiquíssima raiz indo-europeia eghs, que depois daria origem ao grego ek e ao latim ex. Todos possuem o mesmo sentido: para fora, tirado de, que não é mais. Refere-se a algo que fazia parte de uma unidade, porém se desintegrou. É o fragmento, o caco, a escória, o átomo de Demócrito perdido em um universo absurdo. O ex-herói é algo assim como uma ex-fé, uma ex-esperança, um ex-amor. Pior que uma apostasia, que um desespero, que um ódio, o ex-herói é um vazio perdido na memória. Por uma lei da estrutura da realidade, o que acontece não pode desacontecer; portanto, o ex-herói não pode voltar a ser herói. Isso só seria possível se ele pedisse perdão pelos seus pecados. Mas cadê a coragem do ex-herói para pedir perdão?

Não foi por acaso que a absolvição de Sergio Moro ocorreu no mesmo dia em que as sentenças de José Dirceu e Marcelo Odebrecht foram anuladas. Na inversão ontológica sob a qual estamos vivendo, o patronato do poder precisa igualar o ex-herói aos ex-condenados. A mensagem tem um destinatário: todos nós, mortais comuns. Se insistirmos em lembrar que o ex-herói é um traidor e os ex-condenados cometeram crimes, seremos transformados em ex-pessoas.

Ao ex-herói, no entanto, não custa lembrar: no tribunal que o absolveu, não existe perdão. Cedo ou tarde, a condenação virá. E volto a dizer: ninguém vai chorar por ele.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

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