Oração fúnebre de Sergio Moro
Depois de ontem, ficou tudo claro: naquele 24 de abril, morria o Moro juiz para nascer o Moro político
“Na guerra não existe nada mais forte do que estes dois soldados: paciência e tempo.”
(Marechal Kutúzov, personagem de Guerra e Paz)
“Não existe arte pela qual se possa adivinhar o caráter de um homem só em observando-lhe a fisionomia. Ele foi um cavalheiro, e nele depositava eu absoluta confiança.”
(Duncan, personagem de Macbeth)
“É urgente ter paciência.”
(Goethe)
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
“É como se alguém tivesse morrido”, disse-me um amigo naquela sexta-feira, e tinha toda razão. Pareciam ter morrido as nossas esperanças, os nossos esforços, as nossas lutas, as nossas conquistas — e inclusive uma parte de nós mesmos. Estarei sendo hipócrita se não admitir que aquele foi um dos dias mais tristes da minha vida. Sim, era como se alguém tivesse morrido. Eu só não sabia que o verdadeiro nome do morto era Sergio Fernando Moro.
Claro que não se trata da morte física (aliás, eu desejo que ele viva e seja feliz por muitos anos, como veremos adiante), mas de uma outra espécie de aniquilação, semelhante ao fim de uma personagem literária ou de uma grande amizade. O impacto e a perplexidade me impediram de compreender que, naquele dia 24 de abril, morria o Sergio Moro juiz para dar lugar ao Sergio Moro político. E quão distantes podem ser dois homens escondidos pelo mesmo nome!
O Sergio Moro juiz desbaratou a máfia que destruiu o país e botou na cadeia o bandido-mor; o Sergio Moro político iniciou sua fala de demissão elogiando essa mesma máfia. O Sergio Moro juiz reacendeu a esperança no coração do povo; o Sergio Moro político afirmou que essa esperança era uma farsa. O Sergio Moro juiz surgiu aplaudido pela gente simples, pelos garis, pelos garçons, pelos frentistas, pelas tias do Zap e até por um tiozão do pavê no aeroporto; o Sergio Moro político nasceu aplaudido pelas hienas, tubarões e capivaras do sistema — a fauna que odeia o tiozão do pavê e despreza os garis, os garçons, os frentistas e as tias do Zap.
E qual foi o primeiro ato do Moro político? Um ato de traição pessoal: expor em rede nacional o diálogo privado (por sinal, anódino) com uma amiga sincera. Que os especialistas em ciência política e maquiavéis da Vila Madalena guinchem à vontade; para um escritor de pequenas coisas, como eu, esse gesto foi simplesmente devastador. Já era o suficiente para matar a alma de um homem. Porém, como sabemos, viria mais.
Rezei muito naquela sexta-feira. Pedi a Deus que me mostrasse a verdade, por mais dolorosa que fosse. E Ele me respondeu com a frase do Marechal Kutúzov que abre esta oração. Tempo e paciência foram os meus aliados no campo de batalha dentro de minha alma. Não é por acaso que o verbo esperar está na raiz da virtude teologal da esperança. O tempo e a paciência mostraram-me o nome de quem realmente morreu naquele dia.
Morreu naquele dia o homem que foi covardemente atacado por uma súcia de víboras com carteirinha da Fenaj, e 24 horas depois era levado pelo tiozão do pavê a um estádio de futebol, onde foi ovacionado por aquela gente comum: os garis, os garçons, os frentistas, as tias do Zap, a torcida do Flamengo. Morreu naquele dia o homem que foi xingado de “juiz ladrão” por um vigarista em pleno Congresso Nacional. Morreu naquele dia o homem odiado e temido por todos aqueles que quebraram as pernas do Brasil com objetivo de oferecer-nos um par de muletas e a conta. Morreu naquele dia o homem que nós defendíamos apesar dos seus defeitos — e aí estava o nosso erro: desviar os olhos desses defeitos, afinal “ele botou o Lula na cadeia” — e que, Deus seja louvado, reduziu todos os índices de criminalidade no país.
Hoje percebo que, de certa maneira, aquele vigarista do PSOL tinha razão ao chamá-lo de “juiz ladrão”. Certamente não um ladrão de dinheiro, nem de bens que possam ser vistos com os olhos da carne, mas de algo cuja existência somente é percebida pelo que há de mais precioso em nós. Ela de novo, a esperança. Sabe onde eu a vi, Dr. Moro? Eu a vi naquela reunião ministerial. Eu a vi nas palavras do Weintraub, nas palavras do Guedes, nas palavras da nossa queridíssima Damares — e nas palavras e palavrões do tiozão do pavê. Àquela sinceridade desconcertante, àquelas declarações de amor pelo Brasil, àquelas explosões nucleares da verdade, o que você opôs, Dr. Moro? O silêncio. O silêncio dos ressentidos, dos vaidosos, dos zelosos pela própria “biografia”.
Uma das mais elementares características de alguém que está morto é o silêncio. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, quando trabalhadores eram espancados, algemados e presos por prefeitos e governadores de bosta. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, quando tudo que se construiu a duras penas em pouco mais de um ano foi destruído em nome de uma “vida” que é nada mais do que a morte do país. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, quando a Damares falou, ela sim, sobre a defesa da vida, especialmente da vida mais frágil, vulnerável e inocente. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, quando o Supremo Soviete Federal decidiu cancelar a democracia brasileira para servir ao Grande Irmão coletivista. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, quando o Dragão Vermelho resolveu se apossar do país. Eu ouvi esse silêncio, Dr. Moro, e posso lhe garantir: ele não é nada bonito. Vai ser necessário um escritor melhor que aquela deputada para escondê-lo em sua próxima biografia.
Que os meus sete leitores me perdoem, mas devo encerrar esta oração voltando ao mesmo tema: a esperança. Tenho, no fundo da minha alma, a esperança de que você se arrependa do que fez, Dr. Moro. Tenha certeza de que, se isso acontecer, receberá o nosso perdão: o dos garis, o dos garçons, o dos frentistas, o das tias do Zap — e talvez até o do tiozão do pavê. Quem sabe um dia, Dr. Moro, possamos ouvir de sua boca: “Você estava certa, Damares, precisamos defender a vida”, “Você estava certo, Abraham, esses caras são uns canalhas”, “Você estava certo, Guedes, tem que privatizar essa porra”, “Você estava certo, tiozão do pavê, o trabalho e a liberdade são mais importantes que a eleição” e “Presidente, desculpe mais uma vez por aquele dia no aeroporto, toca aqui com a mão esquerda, que é a mais próxima do meu coração”.
No dia em que morrer o Moro político e renascer o Moro juiz, eu reescreverei a sua biografia, sem cobrar nada. E então poderemos ouvir juntos a voz do profeta Ezequiel, anunciando o Deus que rompe todos os silêncios: “Dar-vos-ei um coração novo, e porei um novo espírito no meio de vós; vós habitareis na terra que eu dei a vossos pais, e vós sereis para mim o meu povo, e eu serei para vós o vosso Deus.” Amém.
— Paulo Briguet é cronista e editor-chefe do BSM.
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