DIÁRIO DE UM CRONISTA

Volta à República (Parte III)

Paulo Briguet · 20 de Agosto de 2024 às 16:39 ·

Cada objeto da lembrança carrega dentro de si uma necessidade, uma razão, um simbolismo. Tudo se tornou metáfora

Musa, agora a República está vazia. Posso percorrer todos os cômodos da casa sem me preocupar com a chegada de outras pessoas. Afinal, é impossível alguém chegar a um lugar que não existe mais.

No entanto, a casa da Rua Humaitá, demolida há 20 anos, é como se fosse agora, é como se fosse aqui. Cada objeto da lembrança carrega dentro de si uma necessidade, uma razão, um simbolismo. Tudo se tornou metáfora.

Veja este telefone, musa. Quantas vezes conversei com meu pai graças a este aparelho! Paulo o comprou para nós com certo sacrifício, tendo em vista que na época as linhas telefônicas, antes da privatização do sistema, eram consideradas bens declaráveis no imposto de renda, com escritura e tudo. O mais curioso, no caso deste telefone, é a agenda: os nomes e números de nossos amigos e namoradas, inimigos e rolos, colegas de curso e companheiros de militância, estão anotados na parede, como se a República fosse uma caverna habitada por humanos pré-históricos. (De certo modo, era.)

Ao lado do telefone, sob um facho de luz matinal que entra pela janela, está a vitrola. É uma vitrola mono; tem uma caixa só. Empilhados na lateral, estão os discos de vinil, os elepês. Não sei que fim levou a caixa de cinco discos da Sarah Vaughan cantando Gershwin; alguém roubou essa preciosidade. Havia também o “Sampa Midnight”, de Itamar Assumpção, cujas canções eu tentava imitar mal e porcamente no violão. Uma das músicas, que eu escutava diariamente, começava assim: “Rosas, crisântemos e jasmins ∕ Brancas margaridas nos jardins∕ Borboletas, mil cores, nos pólens das flores, porém...  ∕  Isso não vai ficar assim meu bem, não!  ∕  Isso não vai ficar assim...”

Havia outros dois discos que me arrebatavam sempre. Um deles era “Pithecanthropus Erectus”, uma dramática peça de jazz moderno composta por Charles Mingus. A música que dá título ao álbum narra a ascensão e queda da espécie humana através da história. Hoje eu sei que a queda é a nossa própria essência, e que só escaparemos do abismo buscando algo além de nós mesmos. E a resposta começa a ser dada ali, em outro disco de vinil da República: o “Concerto da Coroação”, de Mozart, que ouvi pela primeira vez há 37 anos e sempre me pareceu a trilha sonora da República.

Sim, havia algo além da perpétua queda de Charles Mingus, e estava na inspiração dos grandes mestres: Bach, Mozart, Beethoven. Acima deles, só havia a fonte primordial: Deus. Mas naquela época eu estava surdo a Ele. Descobriria a verdade somente muitos anos depois, do contrário não suportaria o peso do meu próprio egoísmo. Hoje posso acordar do pesadelo da história; um dia, verei face a face.

Musa, eis-me aqui de volta à velha vitrola da velha República. Eis-me aqui discando — sim, discando — o número de meu pai em Araçatuba. Eis-me aqui olhando pela janela e percebendo que todas as tempestades de verão são uma única tempestade de verão. Estou sozinho no meu antigo lar. A agulha da vitrola encontra a superfície do vinil e soam os primeiros compassos de um concerto que explica o desconcerto do mundo...

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

Leia também:
Volta à República (Parte I)

Volta à República (Parte II)

 


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