DIÁRIO DE UM CRONISTA

Volta à República (Parte I)

Paulo Briguet · 16 de Agosto de 2024 às 17:38 ·

Uma viagem à primeira pracinha da Rua Humaitá, aquela dos ipês amarelos
 

Ó musa, ajuda-me a fazer uma viagem no tempo e voltar à manhã em que os ipês amarelos deixaram cair uma chuva de pétalas sobre a pracinha da Rua Humaitá. A suavidade com que as flores amarelas pousaram sobre o tapete da verde da praça foi de tal ordem que a minha ressaca da noite anterior, ressaca das brabas, subitamente se converteu em alegria. Era uma consolação de Deus, obtida por súplica de Maria, mas naquele tempo eu não estava preparado para compreender isso.

Assim que cheguei a Londrina, disseram-me: “Você vai morar na primeira pracinha da Rua Humaitá, aquela dos ipês amarelos”. Eu não tinha a mínima ideia de quão dramática pode ser a condição de morador de uma pracinha; de quanto isso me marcaria pela vida afora, feito uma tatuagem na alma. A primeira pracinha da Humaitá será meu endereço espiritual para sempre. Sem compreendê-la, eu jamais conheceria a mim mesmo.

Estou vendo, ó musa, a casa do alemão na esquina, cuja inacessibilidade me intrigava; a casa de uma família que reclamava das nossas festas (e hoje eu sei com quanta razão!); a casa de um dos últimos mecanógrafos de Londrina, que tinha sua loja no centro comercial; a nossa República, no número 143; o sobrado em que morava o médico com sua família; a casa onde o Seu Hugo cuidava de seus idosos pais; e, atravessando a rua, o Bar do Baianinho.

A República não existe mais. Há 25 anos, foi demolida, e em seu lugar construíram um prédio de apartamentos. É claro que fazíamos festas e incomodávamos a vizinhança, mas não era todo dia. Afinal, éramos estudantes; com a exceção deste cronista de sete leitores, todos estudavam. Tínhamos, ainda que precária, uma certa medida das coisas. Hoje essa medida se perdeu; parece que a pracinha da Humaitá, antes quase bucólica, foi transformada numa espécie de cracolândia. Isso me dá uma tristeza muito grande.

Musa, hoje eu quero visitar um a um meus antigos vizinhos, e pedir-lhes desculpas por nossos excessos, por nossas bagunças, pelas noites de sono que os fizemos perder. Sei que alguns deles já não se acham mais entre nós, mas, eia, é exatamente essa a vantagem de viajar no tempo. Posso até fazer-me acompanhar de meu pai em cada uma das visitas. Depois vamos, eu e ele, jogar uma sinuca no Baianinho. Sim, sim, eu nunca soube jogar sinuca, mas isto aqui é uma crônica! De qualquer maneira, Paulo me ensinará a manejar o taco. Ele jogou até com o Carne Frita.

Sento-me agora num dos bancos da pracinha. É alta madrugada; aquele ponto da noite em que a escuridão é tão absoluta que começa a gerar uma enigmática esperança de luz. Procuro alguém ao meu lado; não está, evadiu-se de minha vida. Ouço um canto de passarinho, estou certo de que a manhã vai nascer em alguns instantes. Que tal se eu tomasse um café na padaria de Sônia? Mas não existe mais padaria da Sônia... Olho para o outro lado da calçada, vejo que a República está lá, de porta aberta, como sempre. Musa, ajuda-me a ter coragem para atravessar esta rua e continuar amanhã...

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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