CRÔNICA

Os ossos do defunto

Renan Rovaris · 24 de Junho de 2024 às 18:55 ·

Deixemos o Ocidente de lado, que o Ocidente inteiro é coisa demais para se querer salvar. Falemos apenas sobre a salvação do Brasil

“Ninguém desenterra um defunto amado para ver como é que estão os ossos.”
(Rachel de Queiroz)
 

As ruas do centrinho de Florianópolis são encantadoras a quem tem olhos para enxergar além de prédios históricos pichados e nariz para cheirar além da amônia que sobe das esquinas mais estreitas no mormaço do verão.

Mas não é sobre as belezas que eu quero falar. É sobre a urina mesmo — melhor: sobre os responsáveis pelo cheiro.

Marquei o ponto de desembarque na Praça XV de Novembro, mas decidi pedir ao motorista de aplicativo que me deixasse ali no estacionamento do Terminal Urbano. Desci.

Súbito, à minha esquerda, um rapaz bate vigorosamente nas costelas de um mendigo com um generoso pedaço de madeira. Após poucas e boas bordoadas, um soco no queixo encerra a questão, e o mendigo cai de barriga na calçada.

Algum leitor mais curioso questionará qual foi o motivo da briga; outro mais preocupado gostaria de saber o que fiz quando vi aquela cena crudelíssima. Ao primeiro, respondo que o motivo eu não sei, mas o episódio aconteceu em frente a um bar — ou era restaurante? Não, era um bar que também servia comida —, e o rapaz gritava:

— Sai daqui! Sai daqui, vagabundo!

Ao segundo leitor, digo o que disse a um amigo que me fez a mesmíssima pergunta: sinceramente, quis me meter e mandar o rapaz deixar aquele esfarrapado ir embora, mas ele empunhava um possível — e definitivamente maciço — pé de mesa, e — eu ainda não disse a vocês — havia no local mais um monte de gente oferecendo apoio moral à surra. Aí, infelizmente, tive que deixar o mendigo apanhar sozinho.

Vejam bem, eu tive vontade de salvá-lo da surra. Salvei-o com o coração, fiquei na torcida para que se livrasse das pauladas.

E meu amigo me disse:

— Preferiu olhar para o outro lado e seguir a vida, como faziam os alemães. Quer salvar o ocidente, mas sem se arriscar muito, né?

A pergunta que fiz a ele — e faço agora a ao leitor preocupado — é a seguinte: o Ocidente quer ser salvo? Ou, por outra, merece salvação? Eu não sei. Me digam vocês.

Mas deixemos o Ocidente de lado, que o Ocidente inteiro é coisa demais para se querer salvar. Falemos apenas sobre a salvação do Brasil.

Nesta semana, cheirando gotinhas de dopamina que nem viciado, eu rolava os vídeos das redes sociais até dar de cara com um jovem que contava como é filmar a própria mãe fazendo sexo. Imaginem vocês, trinta anos atrás, dizer isso a uma prostituta. Ela, ofendidíssima, lhe daria um tapa na cara e sairia dizendo que não é mulher para ouvir esse tanto de pouca-vergonha. E o que me espanta é que já tem gente neste país que não se espanta com aquela frase, “um filho filmando a própria mãe fazendo sexo”. Há gente aqui que vê a coisa como uma vitória da liberdade, uma conquista de jovens que não foram criados debaixo de uma empoeirada moralidade religiosa.

Talvez eu finalmente esteja ficando velho, para bem ou para mal. Minha mulher diz que eu não consigo mais lidar com gente.

Numa de suas crônicas, Rachel de Queiroz fala sobre um sítio de veraneio que sua família comprou quando ela ainda era moça. Era lindo, com açude, pomar, árvores frutíferas, uma casa enorme que parecia o Vaticano. Por fim, o tempo passou e o sítio, já vendido e dilacerado, ficou irreconhecível. Rachel diz que nunca mais voltaria lá. Doía-lhe muito. Não queria ter que desenterrar um defunto amado para ver como é que estavam os ossos. Eis o que eu queria dizer: não quero desenterrar o Brasil.

Renan Rovaris é escritor, designer e colaborador do BSM.

 


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