JORNALISMO

A mídia brasileira e a farsa venezuelana

Especial para o BSM · 6 de Agosto de 2024 às 17:17 ·

Isabela Tacaki critica a atuação pífia da imprensa na cobertura das eleições presidenciais da Venezuela. O que está acontecendo por lá não é “normal” nem “tranquilo”
 

Por Isabela Tacaki

O cenário é este: o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela — órgão do executivo controlado na prática pelo ditador Nicolás Maduro — declarou que o atual presidente venceu com 51% dos votos no último dia 28 de julho. A oposição denuncia fraude eleitoral e afirma que o verdadeiro vencedor é Edmundo González. As atas eleitorais ainda não foram apresentadas pelo regime até esta data.

Vimos um cenário parecido em 2018, quando Nicolás Maduro foi reeleito. Em janeiro de 2019, Juan Guaidó, então presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, se autodeclarou presidente interino do país, também alegando fraude na eleição. Na época, vários países reconheceram Guaidó como presidente da Venezuela, como Estados Unidos, Canadá, França e Brasil, que tinha Jair Bolsonaro à frente do governo brasileiro.

Diante desses desdobramentos, temos um outro componente aqui no Brasil que intriga: a mídia. Estamos acompanhando imagens de pessoas sendo violentadas, presas e uma eleição claramente manipulada. A questão é o desempenho da mídia brasileira nessa cobertura. Curiosamente, a imprensa não parece tão horrorizada como esteve quando o ex-presidente Jair Bolsonaro visitou o presidente russo Vladimir Putin para negociar fertilizantes, no início da invasão na Ucrânia. As manchetes nas capas dos jornais sobre os incêndios no Pantanal e o aumento no desmatamento na Amazônia, em que até Leonardo DiCaprio se intrometeu, foram mais alarmantes do que a cobertura do sangrento regime do país vizinho. Onde estão os artistas para cobrar do governo Lula uma posição à altura do que está acontecendo na Venezuela?

Todos sabem, inclusive a mídia, o quão companheiros são Lula e Maduro. Não é de agora a admiração do presidente do Brasil por ditadores como Hugo Chávez e Daniel Ortega. Lembrando que o Tribunal Superior Eleitoral proibiu associar Lula a Ortega: Eu vi com meus próprios olhos quando um colega recebeu carta da instituição com ameaça de bloqueio de suas redes sociais caso a informação não fosse retirada do ar.

No domingo da votação na Venezuela, até havia uma preocupação da mídia. O presidente Lula declarou estar assustado com uma declaração de Maduro sobre um possível “banho de sangue”. Os olhos da imprensa estavam atentos e mostrando até uma certa preocupação. Mas foi só sair o resultado com a vitória de Nicolás Maduro e o presidente brasileiro dizer que foi um processo “normal e tranquilo” que as mãos de quem defende essas figuras foram lavadas. De sangue. Hoje a internet possibilita o acesso à verdade. É possível ter acesso às informações reais do que os nossos vizinhos estão passando.

Alguém ainda duvida que a Venezuela é um regime autoritário? Sério mesmo que bastou uma declaração de Lula para os olhos não focarem mais na Venezuela com tanta preocupação? Seria cegueira ou interesse? Até alguns apoiadores do governo atual, como o senador Randolfe Rodrigues, têm feito críticas à lisura do processo lá e o PT fez o quê? Saudou publicamente a Venezuela pelo processo eleitoral “pacífico e democrático”.

A mídia brasileira faz seu papel de noticiar os desdobramentos dessa eleição de forma bem medíocre. Já destacou outros assuntos com bem menos relevância que este. As pessoas estão morrendo violentamente, sendo presas injustamente, só para lutar pela liberdade. Ficamos horrorizados com a guerra na Ucrânia e na Palestina, cobrindo todo aquele banho de sangue, e aqui no país ao nosso lado, estamos só noticiando os fatos, com a mesma sensação que nosso presidente nos deu: um processo normal e tranquilo. Preciso isentar alguns especialistas que têm se revoltado com a situação, mas não o suficiente para sua voz ecoar mais alto no nível que o fato merece.

Se um veículo noticia as barbáries que estão acontecendo lá de uma forma mais agressiva, os outros veículos começam a olhar aquela notícia com preocupação e seguir na mesma linha. Ninguém quer ficar para trás. Seja uma notícia boa ou ruim. Quem pauta o que é mais importante? Sempre tem alguém por trás para pautar o essencial. A mídia tem poder. Pode ser que não consiga influenciar a queda de Maduro em outro país — afinal, o processo de dissolução da ditadura sempre é complexo — mas a mídia tem o poder de mudar a mente das pessoas para não pensarem que é “normal e tranquilo” o que está acontecendo lá. Para não darem a sensação de que o regime não é tão ruim assim. Para que os espectadores das notícias não pensem que nosso presidente apoia um regime sangrento como esse.

Lula já disse certa vez que quando alguém quer dar um golpe se cria uma narrativa, e a mentira acaba se tornando verdade. E quem noticia a narrativa? A mídia. A mídia tem o poder de transformar uma pessoa no que ela quiser. O poder emana do povo? Eu tenho cada vez mais certeza de que não. Emana da mídia.

Isabela Tacaki é jornalista, especialista em ciências políticas, atuou por 10 anos no Grupo Bandeirantes como âncora de jornal, repórter e garota do tempo. Também teve passagens pela TV Gazeta em São Paulo e RicTV Record em Londrina.

 


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