DIÁRIO DE UM CRONISTA

O riso e o esquecimento de Gilmar Mendes

Paulo Briguet · 5 de Abril de 2024 às 17:00 ·

Ministro do STF plagia frase de Milan Kundera e usa ditadura do passado para esconder a ditadura do presente

Na última terça-feira, Gilmar Mendes publicou a seguinte mensagem em suas redes sociais:

“A luta contra o abuso de poder é também a luta da memória contra o esquecimento. Hoje e sempre, é preciso recordar o golpe de 1º de abril de 1964 e suas gravosas consequências para o desenvolvimento institucional do Brasil. É fundamental que, ao registrarmos a passagem dessas seis décadas, rememoremos as violências e as violações cometidas, a fim de que tal estado de coisas jamais se repita. Ditadura nunca mais!”

Quase ninguém percebeu, mas a primeira frase é plágio de uma passagem do romance O Livro do Riso e do Esquecimento, do escritor tcheco Milan Kundera (1929-2023). Trata-se da primeira obra publicada por Kundera na França em 1978, três anos depois de ter deixado a Tchecoslováquia comunista. Dividido em sete partes, como todos os romances do autor, O Livro do Riso e do Esquecimento questiona a objetividade da memória e demonstra como ela pode ser manipulada e distorcida com a passagem do tempo. Ao mesmo tempo, Kundera faz reflexões sobre o totalitarismo, a censura e a luta pela liberdade individual em uma época de opressão política.

A frase lulada por Gilmar originalmente é do personagem Mirek e pode ser encontrada na primeira parte do livro, intitulada As cartas perdidas:

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.”

Mirek diz essas palavras em 1971. Naquele ano, a Tchecoslováquia estava mergulhada no período trevoso que se seguiu à chamada “Primavera de Praga” e à invasão do país pelos tanques soviéticos. Mirek guarda em seu apartamento uma série de cartas e documentos em que se discute a situação do país. No ponto em que pronuncia a frase acima, ele está decidido a enviar esses textos para um local mais seguro, afinal, no regime comunista,

“(...) as leis punem tudo o que pode ser qualificado de atentado à segurança do Estado. Nunca se sabe quando o Estado vai começar a gritar que essa palavra ou aquela atenta contra a sua segurança. Portanto, [Mirek] decidiu levar seus escritos comprometedores para um local seguro.”   

Sinceramente não sei se Gilmar realmente leu Kundera ou se o plágio da frase foi obra de algum assessor, mas de qualquer modo é impossível ler essas palavras e não pensar no Brasil atual.

Todas as ditaduras — e o regime PT-STF não poderia ser diferente — promovem aquilo que pode ser chamado de esquecimento seletivo. Gilmar diz que não podemos jamais esquecer os crimes ocorridos no passado longínquo, mas tenta ocultar o que está acontecendo diante dos nossos olhos. Os abusos do poder de anteontem são usados para apagar os abusos do poder de hoje. Enquanto Gilmar chorava “as gravosas consequências” do regime militar, um sujeito condenado a 30 anos de cadeia por corrupção e defensor da ditadura mais cruel da América Latina subia à tribuna do Senado para defender o que chama de “democracia social”, ou seja, a democracia feita com o assalto à vida, à liberdade e à propriedade das pessoas comuns.

No Brasil de hoje, nós também não sabemos qual de nossas palavras poderá passar a ser vista como “um atentado à segurança do Estado”. Assim como na Tchecoslováquia a líder dissidente Milada Horaková foi enforcada por atentar contra a democracia socialista, no Brasil qualquer pessoa pode ser jogada numa cela suja por conspirar contra o Estado Democrático de Direito. Kundera conta que os partidários do sonho comunista dançavam nas ruas enquanto o corpo de Milada pendia de uma forca; aqui, o patronato político sorri enquanto cidadãos inocentes têm a sua vida destruída por um tribunal do ódio e da vingança.

Mas pode ficar tranquilo, Gilmar: nós não esqueceremos o seu riso.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus e O Mínimo sobre Distopias.

 


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