DIÁRIO DE UM CRONISTA

Pérola negra e céu azul

Paulo Briguet · 25 de Abril de 2024 às 15:20 ·

O disco que me acalmou e consolou nos tempos em que eu rejeitava a pedra preciosa que conduz ao Reino dos Céus

A pérola é a única pedra preciosa que não se origina do reino mineral, mas de um ser vivo. Ela se forma quando algum elemento externo — por exemplo, um grão de areia — invade o corpo da ostra. Por ser a beleza que nasce da dor, a pérola tornou-se um símbolo da redenção cristã, tendo sido mencionada por Jesus em duas ocasiões no Evangelho de São Mateus. “Não lanceis aos cães as coisas santas, não atireis aos porcos as vossas pérolas, para que não as calquem com os seus pés, e, voltando-se contra vós, vos despedacem.” (Mt 7,6) “O Reino dos Céus é ainda semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Encontrando uma de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a compra.” (Mt 13,45-46)

Imagine-se então o valor e a raridade de uma pérola negra! Pois esse era o nome do disco de Luiz Melodia que tínhamos na velha República da Rua Humaitá; eu o escutava diariamente, na vitrola de uma caixa só que havia na copa, ao lado de um telefone e uma parede toda rabiscada com nome de amigos e ex-namoradas.

Várias vezes eu escutei “Pérola Negra” da primeira à última faixa, sem pular nenhuma. Confesso que até hoje não entendo algumas letras do Luiz Melodia; aliás, creio que não tenham sido feitas para ser entendidas. De certa forma, elas representavam o meu universo mental durante um longo período na vida. O importante é que aquele LP me acalmou e consolou em momentos difíceis da juventude, nos tempos em que eu rejeitava a pedra preciosa que conduz ao Reino dos Céus.

Minha Melodia preferida variava de tempos em tempos. A melancólica “Magrelinha”: “O pôr do Sol ∕ vai renovar, brilhar de novo seu sorriso...” A dramática “Vale quanto pesa”: “Quanto você ganha pra me enganar? ∕ E quanto você paga pra me ver sofrer?...” A estranhíssima “Abundantemente morte”: “Sou peroba, sou a febre, quem sou eu? ∕ Sou o morto que viveu, corpo humano que venceu...” A nostálgica “Estácio Holly Estácio”: “Se alguém quer matar-me de amor, ∕ que me mate no Estácio...”

Mas a minha Melodia do coração, após todos estes anos, é “Estácio, eu e você”. Aquela que começa com uma bela frase de flauta e diz assim: “Vamos passear na praça enquanto o lobo não vem...” Tudo está ali: a pracinha da Rua Humaitá, a presença dos meus amados Rosângela e Pedro no meu futuro, a minha amiga que agora luta pela vida, a vida torta da qual sou sobrevivente... O lobo é a morte.

Cada um de nós tem o seu Estácio. O meu Estácio se chama Londrina. É para ela, ensaio do Céu, que eu volto sempre, movido pela memória e por um amor que emana de Deus. Obrigado, Luiz, pelas pérolas de sua Melodia, que tantas vezes me consolaram na pracinha da Humaitá.  “Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração.” (Mt 6,21)

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

   

 


"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"



ARTIGOS RELACIONADOS