DIÁRIO DE UM CRONISTA

O que o prisioneiro viu na cela escura

Paulo Briguet · 10 de Abril de 2024 às 10:17 ·

Quando os nacional-socialistas prenderam Padre Kentenich, a intenção era enlouquecê-lo. O resultado foi deixá-lo mais próximo de Deus
 

“Eternidade é a posse simultânea e completa da vida infinita.”
(Boécio, filósofo latino)


Padre Kentenich entrou no bonde com sua maleta de mão, dentro da qual levava uma muda de roupa, um terço, papel, lápis e um livro. Havia poucos passageiros a bordo. Acomodou-se numa das últimas poltronas e olhou pela janela. A linha do bonde que conduzia de Vallendar a Coblença margeava o Reno. O silencioso viajante contemplou o grande rio: quantos personagens, dramas e milagres haviam sido banhados por aquelas águas ao longo da história? O Reno agora era a testemunha de uma tragédia espiritual sem precedentes na Alemanha. Muitos crimes e loucuras o Reno havia presenciado, mas nada se comparava à peste moral do nazismo.

“Talvez seja preciso passar por isso”, repetiu o Padre Kentenich. “Só podemos reconhecer a luz depois de enfrentar a escuridão.” Sorriu, embora soubesse que ninguém presenciaria o sorriso, “exceto duas pessoas”. Abriu a maleta, enquanto o bonde seguia com o seu balanço um tanto semelhante às batidas de um coração humano. Lá fora, a beleza da paisagem parecia alheia aos tormentos da vida social. As árvores e flores não estavam em guerra. Na página marcada com uma tira de tecido vermelho, o Padre leu: “Falta-nos agora dizer, pois, como esta ditosa noite, embora produza trevas no espírito, só o faz para dar-lhe luz em todas as coisas”. As palavras de São João da Cruz sobre a noite escura da alma contrastavam com a radiante manhã do Vale do Reno.

O Padre mergulhou na leitura e só teve a atenção interrompida minutos depois, quando um barulhento comboio militar se aproximou do bonde. O estrépito era todo produzido pelos motores; os homens, carregando fuzis e metralhadoras, estavam mudos e pensativos. Kentenich pensou na tristeza das mães desses moços, tão jovens, sendo conduzidos para o campo de batalha, onde a morte os aguardava com seus dedos frios. Voltou às reflexões de João da Cruz: “Profunda é esta guerra e combate, porque há de ser muito profunda a paz que a alma espera. E se a dor espiritual é íntima e penetrante, o amor que há de possuir a mesma alma será igualmente íntimo e apurado. Com efeito, quanto mais íntima, esmerada e pura há de ser e ficar a obra, tanto mais íntimo, esmerado e puro há de ter sido o lavor; e o edifício será tanto mais firme quanto mais forte o fundamento”.

Ao fechar o livro e meditar sobre as palavras do grande místico espanhol, Padre Kentenich viu-se rezando pelas mães daqueles soldados. E pela primeira vez em muito tempo lembrou-se daquele triste 12 de abril de 1894, quando sua mãe o levara para o Orfanato São Vicente de Obernhausen. Tinha 9 anos de idade. No trem que os levou de Colônia a Obernhausen, o pequeno José segurou as lágrimas com muita dificuldade. Antes de se despedir do filho, a Sra. Katarina Kentenich levou-o até a capela do orfanato e postou-se em frente à imagem de Nossa Senhora. Katarina retirou a correntinha e a cruz douradas que levava consigo e colocou-as no pescoço da Mãe. Aquelas eram suas únicas riquezas, as lembranças de sua primeira comunhão. De joelhos, a pobre mulher suplicou a Nossa Senhora que cuidasse do menino: “Educa meu filho! Sê-lhe inteiramente mãe! Cumpre no meu lugar os deveres de mãe!”

Muitos anos depois, o Padre Kentenich ainda se lembraria do momento em que a mãe terrena o consagrou à Mãe celestial. Por toda vida, ele repetiu que aquela consagração foi a semente de toda sua obra posterior. O dia em que chegou ao orfanato de Obernhausen, que seria o mais triste de sua existência, acabou por tornar-se um dos mais felizes.

Este 20 de setembro de 1941 também estava predestinado a ser um dia de escuridão. Era um sábado. No domingo anterior, dois agentes da Gestapo, desajeitados em suas fardas escuras, haviam aparecido na Casa de Retiros de Schoenstatt à procura do Padre Kentenich, que os atendeu prontamente. Após um breve e ríspido interrogatório, deram-lhe ordem para se apresentar na sede da polícia política em Coblença no dia seguinte. Com um sorriso que desconcertou os agentes nazistas — eram dois jovens, um deles quase imberbe, provavelmente filhos de camponeses da região —, o Padre informou que era impossível fazê-lo, pois no dia seguinte iria coordenar um retiro para sacerdotes.

— Que tal se mudarmos a data do nosso encontro para o próximo sábado? Irei sem problemas.

Os agentes trocaram um olhar e, sem dizer uma palavra, concordaram. O mais jovem pensou: “Se esse padreco já recusou uma proposta de fuga na semana passada, não vai ser agora que nos enganará. Decerto ele acha que vai ser liberado. Grande tolo!”

Mas o Padre Kentenich sabia perfeitamente que seu destino era a prisão. Ao saltar do bonde em Coblença, recordou as palavras que dissera aos padres no retiro: “Cantarei para os senhores o meu canto de cisne...” Conduzido à presença do major Immanuel Heide, notou um grande nervosismo no oficial. Parecia até que o interrogado era o major, e não ele. Ao final de uma rápida conversa, Heide olhou para a luz que pendia do teto e disse com um sorriso forçado:

— O sr. será levado à nossa suíte eclesial, Padre. Infelizmente, lá não temos lâmpadas.

O bunker da Gestapo em Coblença funcionava em uma antiga agência bancária confiscada pelos nacional-socialistas e por eles transformada em centro de interrogatório e cárcere. A “suíte eclesial”, na verdade, consistia no antigo caixa-forte da agência, ora uma cela solitária. Ao passar pelos corredores do bunker, ladeado por dois grandalhões que suavam abundantemente, Kentenich notou que havia nas celas uma grande quantidade de sacerdotes e seminaristas conhecidos. Quase todos os presos gritavam palavrões e rogavam pragas. O Padre ficou especialmente triste quando viu um sacerdote blasfemando contra a Santíssima Trindade. Um dos grandalhões ordenou, fazendo um rapapé:

— Faça o favor de entrar, Eminência.

Antes de trancar a porta, o outro agente disse, numa voz esganiçada que não combinava com seu porte físico:

— Aí você terá tempo de sobra para pensar no seu Cristo judeu.

Padre Kentenich estava só. Completamente só. A intenção dos nazistas era clara: enlouquecê-lo.

No entanto, quando se encontrou sozinho na escuridão da solitária, o Padre sorriu. Ninguém viu aquele sorriso, exceto... duas pessoas. Eram o Filho e a Mãe. O Filho se mantinha silencioso, como sempre ficava no altar, durante as celebrações eucarísticas. A Mãe estava mais próxima, em sua profunda humanidade sem mácula. Vestia o manto azul e o véu branco que os três pastorzinhos portugueses tinham visto em Fátima, alguns anos antes. As mãos da Virgem se abriram em um gesto de acolhimento. O Padre notou que, de maneira análoga ao Sol e à Lua, todo o brilho da Mãe emanava do Filho. Vieram aos lábios de José Kentenich as palavras do Livro dos Atos: “NEle vivemos, e nos movemos, e somos”.

Foi então que o Padre percebeu em seu coração: a cela de Coblença, na verdade, era o Santuário de Schoenstatt. Deixou sua alma abrir-se num terno diálogo de amor, bem confidencial, com sua Mãe Maria, sabendo que podia em tudo contar com esta Rainha. Sua confiança nela era total, não precisava de provas e visões extraordinárias. 

A Mãe sorriu; P. Kentenich sentiu que ela iria dizer alguma coisa, bem baixinho, murmurando apenas no silêncio de seu coração, assim como sempre os dois se relacionavam pela Aliança de Amor, na luz da fé. Com o ouvido no coração de Deus a sua mão tocou o pulso da história.

— Meu querido filho, hoje vamos contemplar a árvore que plantaste no Novo Mundo. Lembra-te do dia em que enviaste as Doze Irmãs para o Brasil?

— Sim, Mãe Santíssima... como se fosse hoje.

— Pois estas sementes vão florescer, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Hoje, porém, falar-te-ei, meu filho, sobre essas heroínas que vivem tão longe daqui, mas perto do meu Imaculado Coração. Para que tu sintas a consolação de Deus no meio destas trevas. Para que saibas: nunca estarás sozinho. Nunca. Foi o que prometi à tua mãe, recorda-te?

— Guardo esta promessa no coração, Mãe. Foi o dia mais importante da minha vida.

— Tudo que vale para ti também vale para tua Obra. Peço-te apenas que não digas a ninguém o que te mostrarei hoje. São acontecimentos que pertencem à dimensão do mistério. Um dia, todos saberão de tudo, contemplarão feitos admiráveis. Prefiro, como Jesus, utilizar sempre os pequenos, mesmo conduzindo-os como faço contigo, também por meio de cruzes e sofrimentos. Assim todos saibam que o autor dos grandes prodígios é o Todo Poderoso, que fez em mim e opera sempre maravilhas nos humildes e confiantes.

Imediatamente, a escuridão da cela foi invadida por um enorme espelho de luz, em que o Padre Kentenich teve uma profunda intuição interior do que acontecia no Brasil naquele momento. Começou a trazer na sua presença, no seu pensamento, cada uma das missionárias brasileiras e, pelos relatórios que até então havia recebido, conseguiu imaginar a realidade de maneira prodigiosa. Vislumbrou em seu interior o que poderia estar se passando agora com elas, e o que sucederia no futuro. Estava informado e acompanhava sempre tudo, os mínimos detalhes do que elas lhe relatavam. Assim, não se deixou tocar pelas agruras de uma masmorra e podia se transportar espiritualmente a um outro patamar, bem superior, até onde cada uma atuava.

Então P. Kentenich pensou logo na Irmã Gerharda Pflips. Com grande emoção, o Fundador percebeu que a Irmã, naquele momento, conversava animadamente com as companheiras mais jovens do Colégio Mãe de Deus, que lhe observavam com admiração e tratavam com carinho. Era começo de noite; Irmã Gerharda despediu-se das noviças, antes de retirar-se para seus aposentos. Uma vez no quarto, ela buscou o seu material de costura. Tecia uniformes das alunas. A certa altura, P. Kentenich notou que a Irmã rezava durante a costura, exatamente como fazia o sapateiro apresentado a Santo Antão do Deserto, aquele que, a cada ponto da costura, dizia:

— Salvai mais uma alma, Senhor!

Naquele momento, Padre Kentenich teve a íntima certeza de que a oração iria salvá-lo da loucura em Coblença e em qualquer outra provação que o destino, o Estado ou mesmo a amada Igreja colocassem em seu caminho. Nas horas mais difíceis, ele pensaria em Irmã Gehrarda, a costureira orante do Brasil.

— Irmã Gehrarda cumprirá sua missão com grande entusiasmo e aplicação. Viverá até os 81 anos, servindo a Obra de Schoenstatt na Província de Santa Maria, no Sul do Brasil. Até o último dia de sua vida terrena, 26 de novembro de 1978, rezará nas intenções e preocupações da Província brasileira — segredou a Mãe.

A seguir, a imagem da Irmã Agneta Braun surgiu vívida na parede da cela. O Padre viu-a em dificuldades com o idioma e o clima no novo país que escolhera. Mas todas os percalços seriam oferecidos pela jovem alemã ao Capital de Graças para edificar o Reino da Mãe Três Vezes Admirável no Brasil. Nos primeiros tempos de Londrina, ela se destacou pela dedicação maternal, que não conhecia fronteiras. Esqueceu-se de si. Em suas orações, quem estava em primeiro plano era sempre o outro: as alunas, as companheiras de missão, a Família de Schoenstatt. Ela viveu o pleno significado da expressão “sacrifício”: sagrado ofício. Empenhou-se especialmente em trabalhar pelo surgimento de vocações brasileiras para a Obra.

— Sim, meu filho, como podes ver, o sacrifício de Irmã Agneta não será em vão. Por 32 anos, ela ainda semeará flores no meu Jardim, até partir, amada e admirada pelas almas vocacionadas que formou para a vida missionária.

Das mãos da Rainha, saiu uma estrela cintilante. Aos poucos, a estrela foi tomando a forma de Irmã Norberta Schulte. Ela foi a primeira diretora do Colégio Mãe de Deus e a primeira Provincial das Irmãs de Maria no Brasil. O Fundador assistiu às cenas de infância de Norberta, nascida no seio de uma família profundamente católica de Visbeck. Com alegria e gratidão, ela se pôs à frente das iniciativas para construir a primeira escola de Schoenstatt fora da Alemanha. No espelho de luz, P. Kentenich observou as 100 pequenas casas de madeira erguidas em uma clareira da floresta sul-americana — a nascente cidade de Londrina. A Mãe disse ao coração do Padre:

— Norberta será um modelo de santidade para todos que a conhecerem, e também para as futuras gerações. Ela acompanhará a florescência de tua Obra, meu filho José. Um dia, tu dirás: “Se quiserem ver uma autêntica Irmã de Maria, olhem para Irmã Norberta!”

Padre Kentenich pressentiu que o ardor missionário de Ir. Norberta a levaria a outros continentes. Até 1945, ela permaneceu em Londrina, onde lançou as bases sólidas para o Colégio Mãe de Deus. Depois, atuou em Santa Maria, primeiramente como superiora provincial e, mais tarde, como assistente geral das três províncias do Instituto das Irmãs de Maria na América do Sul (Brasil, Uruguai e Chile). Em 1950, seria chamada a assumir o Conselho Geral das Irmãs em Schoenstatt, como responsável pelas ações nos países de língua espanhola e portuguesa. Mais tarde, o coração de Irmã Norberta voltou a bater com ímpeto missionário: ela foi a responsável pela construção do primeiro Santuário de Schoenstatt na Índia. Seu nome sempre será lembrado com carinho em lugares tão diferentes quanto o Brasil, a Índia e a Alemanha.

Na noite escura de Coblença, o Fundador viu o sorriso de Irmã Norberta, cujo trabalho era realizar o impossível. Viu que ela representaria, com seu trabalho em três continentes, o exemplo vivo da mulher divinizada, filial e construtora da nova ordem social cristã. Em seus 86 anos de vida, Norberta Schulte realizou todas as missões que lhe foram confiadas, superando os desafios do percurso com uma personalidade acentuadamente apostólica e idealista. Seu temperamento era de tal maneira impetuoso que o Fundador chegaria a lhe recomendar, em algumas ocasiões, que tivesse mais paciência na consecução dos objetivos. Com o passar do tempo, a personalidade ativa foi sendo moldada pela serenidade da experiência, transformando Irmã Norberta em uma valorosa e estimada conselheira das irmãs mais jovens.

Enquanto se encantava com a imagem do futuro de Irmã Norberta, P. Kentenich viu uma nova estrela surgir nas trevas do calabouço. Ele reconheceu o rosto bondoso e aristocrático de Irmã Emanuele Seyfried. Nossa Senhora lhe mostrou que Irmã Emanuele serviria à Obra de Schoenstatt e ao Instituto das Irmãs no Brasil o mesmo tempo da vida de Cristo na Terra. Nos primeiros anos em Londrina, Norberta e Emanuele formariam uma daquelas duplas que muitas vezes encontramos na história da Igreja, em que uma personalidade completa a outra. Na classificação psicológica que seria utilizada pelo Fundador, Ir. Norberta tem um temperamento “colérico”; Ir. Emanuele, um temperamento “melancólico”.

— Meu filho José, verás com o tempo que Emanuele se tornará uma das colunas fundamentais de Schoenstatt neste século. A sua bondade é tão grande quanto a sua capacidade de conduzir as almas pelo bom caminho.

As palavras da Mãe foram confirmadas pelas imagens do futuro que P. Kentenich via projetadas na parede do santuário-cela: Emanuele com as alunas; Emanuele com os professores; Emanuele com as Irmãs; Emanuele com os jovens; Emanuele com os seminaristas teólogos e padres; Emanuele com as mães; Emanuele com as famílias. Emanuele assumindo tarefas cada vez mais complexas, culminando com a sua escolha para Superiora Geral das Irmãs de Schoenstatt no mundo inteiro, cargo para o qual seria escolhida em 1967, após concluir os seus 33 anos de missão no Brasil, a Província Tabor.

Com grande emoção, o Fundador soube que Ir. Emanuele Seyfried faria a sua Páscoa definitiva na mesma cidade em que ele se encontrava preso naquele instante — na verdade, não muito longe daquele bunker, no Hospital São José de Coblença. Após o falecimento de Ir. Emanuele, a sua fama de santidade, já existente em vida, ganharia muita força Na noite escura do cárcere de Coblença, o Fundador soube que Emanuele seria homenageada, no Colégio Mãe de Deus de Londrina, como heroína de Schoenstatt, ao lado de Fritz Kühr, Francisco Ziober e Regina Tokano. Todos eles levariam à perfeição o sentimento de filialidade, de fé prática na divina Providência, preconizado por P. Kentenich desde a original Aliança de Amor, em 1914.

Naquele lugar em que não havia dias, nem noites, a passagem do tempo fora substituída por algo muito parecido com a eterna, “a posse simultânea de todos os momentos”, no dizer de Boécio (o qual, diga-se, escreveu sua grande obra, “As Consolações da Filosofia”, preso numa cela). O espelho continuava a lançar imagens que percorriam todo o globo misterioso de Schoenstatt. Nesta maravilhosa paisagem metafísica, brotou a silhueta de Irmã Almut Weingaertner. O prisioneiro viu-a carregando o tijolo histórico da Casa-Mãe de Schoenstatt na viagem para o Brasil, que posteriormente seria colocado nas fundações da sede do Colégio Mãe de Deus, primeiro prédio de alvenaria construído em Londrina. Depois, contemplou as 12 velas colocadas sobre o tijolo, em outubro de 1935, no ato em que as Irmãs se ofereceram como “pedras vivas” para a edificação da Obra de Schoenstatt em terras brasileiras. Almut teria dito, ao embarcar para o Brasil: “A bênção do Fundador constrói casas!”

Kentenich assistiu ao encantamento de Ir. Almut na viagem de trem até o Paraná, quando a jovem irmã alemã deslumbrou-se com a beleza e exuberância da floresta. “Um dia tudo isso será o Jardim de Maria!”, ouviu-a dizer, na janela do trem. E, de fato, Ir. Almut se notabilizou em Londrina como a “jardineira de Maria”. Com sua formação de técnica em agronomia, praticou serviços de jardinagem e paisagismo até o final da vida. O Fundador observou Almut, já bem idosa, nos anos 1990, pedindo às jovens alunas que a levassem a um passeio na Mata dos Godoy, um dos últimos santuários ecológicos que restam no Norte do Paraná. Naquele dia, Almut reviveu os primeiros tempos heroicos de Londrina e, com os olhos marejados, agradeceu às alunas que lhe proporcionaram tamanha alegria. Nossa Senhora segredou-lhe no coração:

— Um dia, o desejo de Irmã Almut tornar-se-á realidade. Meu Imaculado Coração estará em todos os cantos de Londrina, do Paraná, do Brasil. Eis o meu jardim, José... O jardim que Almut ajudou a plantar...

A Virgem então lhe mostrou todos os Santuários, escolas, hospitais e obras de caridade que viriam a ser construídos no Brasil. “Um dia” — pensou Padre Kentenich — “hei de estar nesse Colégio em Londrina, para olhar nos olhos das Irmãs e agradecer pessoalmente o seu empenho e as suas orações”. O Fundador intuía que naquele preciso instante oravam por ele no Brasil. Lendo seus pensamentos, a Mãe Três Vezes Admirável mostrou que era exatamente isso que fazia a Irmã Floriberta Trost, no silêncio de seu quarto.

— Sim, meu filho José. Floriberta está agora rezando por ti. Todos os dias reza o terço com muito fervor em tua intenção.

Dos seus 73 anos de vida, Floriberta dedicou 48 à missão de Schoenstatt. Até os últimos dias, gostava de fazer orações pelas alunas que a procuravam. Com isso, saíam-se muito bem nas provas e em outras dificuldades da vida estudantil. O poder da oração estava personificado naquela que Kentenich incumbiu, ao enviar para o Brasil, a condução da cruz e a edificação do Santuário. Floriberta terminaria seus dias trabalhando na cozinha do Colégio; mesmo com idade avançada, gostava de se sentir útil. Enquanto ela escolhia o arroz, as alunas vinham até a janela da cozinha pedir-lhe conselhos e orações. Um dia, quando o pesadelo do nazismo finalmente terminasse, o Fundador olharia nos olhos de Floriberta e diria a palavra que guardava desde a escuridão de Coblença: “Obrigado”. 

Em seguida, o Padre observou uma pequena e ágil Irmã de Maria que trabalhava na cantina do Colégio em Londrina. Seu nome era Margrit Lamm. Nascida em 1904, em Kappelrodeck, cedo revelou-se vocacionada para uma vida autenticamente mariana. Entusiasmada, cordial e alegre, impregnava todos os ambientes com um profundo amor ao Santuário. Sua vida inteira, conforme observou P. Kentenich, seria dedicada ao serviço: primeiro no Colégio Cristo Rei, em Jacarezinho (PR); depois exercendo cargos de responsabilidade no hospital de Jaraguá (SC), na Santa Casa de Londrina, na Casa Provincial em Santa Maria (RS) e no hospital e maternidade de Rio Negro (PR). Em todos esses lugares, ela espalhou a alegria e devoção. Em 1975, assumiria seu posto na cantina do Colégio Mãe de Deus, onde fez uma legião de amigos entre crianças e adultos, alunas e professores, funcionários e irmãs de fé. A personalidade mariana de Ir. Margrit atraiu a atenção e o carinho da Mãe Santíssima:

— Olha esta minha filha, José. Vê com que pureza ela dedicará seus dias a fazer felizes todos que a cercam.

De repente, Padre Kentenich começou a ouvir um singelo canto. Eram versos compostos pela Ir. Ludwiga Kesting. Como era reconfortante ouvir aquele som celestial! A vida de Ludwiga assemelha-se a um cântico de louvor: desde os primeiros dias no Brasil, em 1935, a Irmã natural de Olpe, na Westfália, demonstrou um forte zelo apostólico. Dedicou-se com as famílias pobres das periferias das cidades em que viveu: visitava as famílias, saciando-lhes a fome de alimentos, a fome de atenção e a fome espiritual. Orientava mães para que mantivessem hábitos de ordem e limpeza em seus lares; dava cursos práticos de costura; estimulava os jovens com oportunidades de trabalho; desenvolveu um importante serviço de catequese para crianças e adultos; conduziu muitos casais ao matrimônio. E a todos os que ajudou, sem exceção, procurava levar para a Mãe de Deus e o Santuário de Schoenstatt.

— A vida de minha filha Ludwiga será consumida inteiramente pelo amor aos pobres — disse a Mãe ao prisioneiro.

O espelho de luz, radiante nas trevas, agora refletia a imagem de Ir. Calixta Hermann, que nos primeiros dias em Londrina teve um papel importantíssimo como tradutora junto aos funcionários e diretores da Companhia de Terras Norte do Paraná, empresa de capital britânico responsável pela colonização de Londrina. Exímia conhecedora do idioma inglês, Calixta facilitou bastante a comunicação entre as Irmãs e os representantes da Companhia de Terras, que desde o início viram a necessidade de trazer uma escola religiosa para a pequena comunidade que nascia no meio da floresta.

Em Londrina, Ir. Calixta iria trabalhar no Seminário Vicente Palotti, onde serviu por vários anos. Ali ela conheceu a família do Sr. Nilo Bettoni, cujas sete filhas — Elza, Edine, Nelda, Nilse, Eresvita Maria, Inês e Evanir — estudaram no Colégio Mãe de Deus. Longe de sua terra natal, Calixta adotou os Bettoni como uma segunda família, por quem sempre teve grande afeto e consideração.

A Irmã Theresita Flesh igualmente se destacou no ensino de idiomas. Com grande rapidez, aprendeu os fundamentos da língua portuguesa e passou a dar aulas da disciplina no Colégio. Também foi responsável por ensinar o idioma de Goethe a centenas de brasileiros. Além disso, destacou-se como professora de canto.

— Minhas filhas Calixta e Theresita não serão apenas tradutoras de idiomas; elas também traduzirão os sentimentos mais puros da alma.

Como se as paredes do calabouço fossem a página de um livro, o Fundador recordou-se do lema das Irmãs no Brasil: Mater habebit curam. A Mãe cuidará de tudo. Com fervor e piedade, a Ir. Mariaregis Kessler repetiu essa frase incontáveis vezes ao longo da vida. Em todas as situações, alegres ou adversas, rotineiras ou inesperadas, tranquilas ou desafiantes, Mariaregis confiava-se à Mãe Três Vezes Admirável. Foi assim que se tornou uma conceituada professora de Matemática, conhecida pelo alto nível de exigência combinado com uma abertura de coração para ajudar as alunas em quaisquer dificuldades. Entusiasmada sempre, estimulava as alunas para que arrecadassem tijolos no esforço de construir o Santuário da Mãe. Teria também destaque como professora de Francês e tradutora de documentos para a Casa Provincial. Além disso, era uma talentosa musicista, tendo sido uma das introdutoras do canto coral e da prática do violino na região de Londrina. Em 1936, foi uma das fundadoras do Coral Santa Cecília, o mais antigo grupo musical em funcionamento na cidade e um dos mais longevos do País. Esse grupo foi inicialmente regido por Ir. Calixta; Mariaregis tocava o violino. Foi dela a iniciativa de trazer na bagagem, na vinda para o Brasil, um exemplar do nobre instrumento musical. Graças a Ir. Mariaregis, Londrina seria para sempre uma cidade que respira música.

— Tenho muita alegria ao ver o que fará esta minha filha Mariaregis. Ela vai ensinar muitas gerações a tocar, a contar, a ler, a escrever, a rezar, a viver.

No momento em que Nossa Senhora lhe deu esta inspiração, o Padre Kentenich identificou a Ir. Mariaregis, que interpretava ao violino uma passagem da Missa de São Joaquim, dedicada ao pai da Virgem Santíssima. Enquanto a melodia envolvia o ambiente do cárcere, Padre Kentenich apercebeu-se da imagem da 12ª Filha de Maria enviada ao Brasil: Ir. Diethield Halm. Formada em contabilidade e excelente organista, em seus 90 anos de vida destacou-se pela fidelidade nas pequenas coisas. No espelho de luz, Kentenich testemunhou as extremas dificuldades enfrentadas por Ir. Diethild nos primeiros anos de Brasil: afinal, não era tarefa simples ser contadora de uma instituição que praticamente não possuía dinheiro nenhum. Mas, consciente de seu papel como integrante da geração fundadora, aceitaria outras incumbências na Obra de Schoenstatt: foi superiora, auxiliadora paroquial e procuradora do Instituto das Irmãs. Em 19 de dezembro de 2000, reunida à mesa com outras irmãs que falavam sobre o Natal jubilar, na sede provincial em Atibaia (SP), disse pausadamente: “Eu gostaria de saber como este Natal vai ser festejado no Céu!” Dois dias depois, partiu em sua Páscoa definitiva.

Envolvido por essas imagens do tempo e da eternidade, P. Kentenich agora estava ajoelhado diante da Mãe. Tinha diante de si a mesma Virgem que, de modo extraordinário, aparecera aos pastorzinhos em Fátima, que fora encontrada pelos pescadores em Aparecida, que se manifestara às crianças em Salette e à jovem Bernardette em Lourdes. A mesma Mãe de Misericórdia que firmara com ele e seus alunos uma Aliança de Amor em 1914. Os lábios do Fundador começaram então a recitar a Ave Maria. Exatamente no centro da oração, estava o nome de Jesus. A presença do Filho de Deus naquele calabouço, ora transformado em Santuário, era o sinal das provações que estavam por vir. Mas o Padre José Kentenich estava ciente de que depois da cruz sempre vem a ressurreição. Quando o carcereiro abrisse a porta da cela, esperando encontrar um homem enlouquecido, veria o sorriso de um homem divinizado.

 — Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. O texto acima faz parte do livro Coração de Mãe (Novo Signo, 2017).

 


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