LITERATURA

O padrasto e o bastardo

Especial para o BSM · 8 de Junho de 2024 às 09:49 ·

Um conto de Renan Rovaris para o BSM: “Tinha o cabelo ralo, estava sempre doente, fraquinho; não corria como os outros meninos, não tinha fôlego. Parecia ter nascido assim, com algo de errado que não sarava”

Por Renan Rovaris

A menina tinha vinte e seis anos e quatro filhos, três do mesmo pai. O rapaz tinha os braços tatuados — e boa parte do pescoço. Era pai dos últimos três, mas criava também — com menos vontade, é preciso dizer — aquele primeiro. Abraçava o menino sem força, fingia um cuidado cansado, deixava-o para depois. A criança não podia alcançar, como faziam seus irmãos, o pai que não era dela, mas vivia a diferença sem reconhecê-la. Não podendo pertencer àquele mistério, àquela força oculta que unia pai e filhos, observava-os de fora, como faria um primo que os visitasse nas férias. O padrasto brincava com os três, e o menino rodeava, procurando, numa solidão insuportável, um canto no qual pudesse se espremer, só para esbarrar na distância intransponível que há entre um homem e o filho do ex-amor de sua mulher.

O rapaz casou porque a menina pegou barriga. O primeiro filho tinha uns dois, três anos quando ele a conheceu; mais, talvez — ele não sabia dizer. Logo vieram outros dois, o último, uma menina, e ele foi ficando, trabalhando, nem tanto vivendo quanto aguentando. Acabou abandonando o adultério, o apego à solteirice, as ambições de moço; parou o futebol, o bar, os amigos; só não parou o amor pelo Corinthians, ao que agarrava-se como se torcer pelo time fosse sua última declaração pessoal de independência.

Aos berros, a mulher o criticava, enquanto ele assistia o futebol na televisão de quinhentas polegadas que eles ainda estavam pagando. Dizia-lhe que escolhesse entre ela e o Corinthians, que o vagabundo só servia pra beber cerveja, que não a levava a lugar algum — e os meninos esperneavam por aquele apartamento espaçoso que nem gaiola… A mãe, mal cabendo nas próprias calças, segurava a menina no colo, grudada ao peito gordo e derretido. A criança ainda nutria-se do leite materno e engatinhava pela casa com a mamadeira cheia de refrigerante, comendo batata frita feito uma pequena viciada. Ele, num tom de religioso ofendido, respondia que o Corinthians nascera em 1910, “há mais de cem anos!”

— E você, nasceu quando?

— Eu vou te deixar, e quero ver qual é a mulher que vai querer homem com três pensões!

— E eu quero ver qual é o homem que vai assumir mãe solteira com quatro filhos… “gorda, ainda por cima!” — pensou ele este último trecho da sentença.

O bastardo era mais velho que os três irmãos, mas quem o visse de fora não teria essa ideia. Era uma criança mirrada, de braços e pernas secos; vivia branco, empalidecido. Por baixo da pele, transpareciam-lhe veias estreitas, que espalhavam-se parecendo linhas da cabeça para o pescoço e morriam nas mãos finas de rato. Tinha o cabelo ralo, estava sempre doente, fraquinho; não corria como os outros meninos, não tinha fôlego. Parecia ter nascido assim, com algo de errado que não sarava.

O padrasto não enxergava a saúde do menino como coisa de seu interesse. Era filho de outro, que emprenhou sua mulher antes dele; era a constante lembrança de que ela não foi primeiro sua, de que teve de outro o que deveria ter tido somente dele. Dentro do menino, embrenhado à sua própria natureza, indissolúvel como a humanidade e a divindade de Cristo, vivia o velho amante da esposa. Aquela sombra, aquele espectro do outro, rondava sua casa, comia da sua comida, gastava seu dinheiro — e ele sentia-se afrontado, traído.

Num inverno mais frio que o normal, o menino gripou severamente. Os remédios da mãe não serviram; não havia chá de ervas ou xarope caseiro que o tirasse daquela miséria, e a febre recusava-se ir embora. Numa penumbra entre a consciência e o delírio, entre o resistir e o desfalecer, o menino pediu então pela companhia do padrasto, que ele chamava de “pai” — palavra que o rapaz recebia com um urro de raiva e dor no interior de sua mente. A mulher convocou o marido, que sentava no sofá, diante da televisão. O homem levantou-se com dificuldade, foi até o quarto dos moleques, aproximou-se da cama e olhou o rosto pálido que tinha os traços do outro, aquele rosto fino que não era seu, aquelas veias estreitas que não carregavam seu sangue, os olhos que não pareciam com os da mãe... O menino também olhava. Admirava-o com a inocência de quem não conhecia seus pecados; via no rosto do homem a imagem do pai, do seu pai. Queria perguntar-lhe sobre o jogo do Corinthians, queria ser visto pelo homem, que chegara em casa sem procurá-lo. Fechando os olhos dolorosamente, porém, enfim desfaleceu sem conseguir dizer qualquer coisa inteligível.

A morte veio furiosa e devastadora. Enterraram o menino num caixãozinho branco, fino e magro como ele. A mãe entregou-se inteira à miséria. Olhava do filho morto para os filhos vivos, dos filhos vivos para o filho morto, e outra vez do filho morto para os vivos, mas já não conseguia saber quem era vivo e quem era morto.

O velório terminou cedo. O padrasto voltou rápido para casa, abriu uma cerveja e foi ver o jogo do Corinthians.

Renan Rovaris é escritor e designer.

 


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