ALTA CULTURA

Adélia Prado, além dos prêmios, além dos rótulos

Especial para o BSM · 26 de Junho de 2024 às 10:51 ·

Em artigo especial para o BSM, o escritor e professor Luiz Carreira fala sobre a autora mineira, vencedora do Prêmio Machado de Assis de 2024

Por Luiz Carreira

O que é um prêmio literário?

Honraria? Recompensa? Reconhecimento? Compensação? Homenagem?

Um poeta precisa ser premiado? Seria fácil dizer que não. Seria fácil e verdadeiro dizer que os prêmios não traduzem nem a verdadeira recompensa nem o verdadeiro reconhecimento do trabalho do poeta. 

Alguém ainda poderia lembrar, também com verdade, que Homero, Virgílio e Shakespeare chegaram até nós sem ganhar Nobel ou Pulitzer. O próprio Cervantes, que dá nome ao mais prestigioso prêmio da língua espanhola, não ganhou um Cervantes. Goncourt não ganhou um Goncourt e Machado de Assis não ganhou um Machado de Assis. 

Com essa brincadeira quero apenas lembrar que é preciso ter cautela com os prêmios, para saber dar a César o que é de César.

Se os prêmios não conferem qualidade às obras, e é a qualidade da sua obra o principal prêmio almejado por um verdadeiro artista, os prêmios ao menos ajudam-no a ser conhecido e divulgado em seu tempo. E, como toda obra é feita para encontrar os seus leitores, os prêmios, assim, podem servir ajudando alguém a chegar ao que é bom.

E aqui chegamos ao que é bom: Adélia Prado, que acaba de ganhar o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra. 

Eu imagino Adélia a caminho da cerimônia de premiação, ouvindo ressoar na sua memória o Eclesiastes: “Portanto, vá, coma com prazer a sua comi­da e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz.” (Ec. 9, 7) 

O prêmio é uma circunstância de reconhecimento público e institucional, muito bem, muito bom, mas a alta qualidade da obra de Adélia fala direto com o Criador, que nos criou para o melhor. A escrita de Adélia é um gesto de amor a Deus, manifesto no amor ao próximo e amor à língua portuguesa.  

Num artigo publicado no Jornal do Brasil, em 1975, Carlos Drummond de Andrade disse, depois de ler os originais de seu primeiro livro, que Adélia era “lírica, bíblica e existencial”. Acertou! Seja em prosa ou em verso, Adélia é sempre lírica. Seja falando do mais corriqueiro dos assuntos, com a mais simples das palavras, Adélia sempre faz ressoar no seu texto as notas altíssimas da poesia e da verdade bíblicas. Seja com olhar agudo ou sob aparente inocência, Adélia é profundamente existencial porque nos leva a contemplar a existência humana no milagre da criação. 

Veja como tudo isso ecoa em versos de aparente simplicidade como estes:


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isso, sim, é consolo.


 

É curto e gracioso, mas não tem nada a ver com os poemas-piada do modernismo. A poesia de Adélia, sob aparente simplicidade, arrisca-se no esforço de colher a graça da linguagem, não a gracinha, não o chiste, não o truque. Sua poesia olha para o mistério da existência, não para a charada divertida. Não facilita nem enfeita. Ela capta o peso do verbo na superfície da linguagem. Faz conviver o dia a dia com o sublime. 

Será muito comum encontrar em perfis escritos sobre ela, alguns rótulos tais como o feminino, o cotidiano, o cristão, o familiar. Podem não estar errados, mas são só rótulos, muito pouco para entender a realidade da sua poesia.

Esses rótulos às vezes distorcem a obra de Adélia com a imagem de uma obra inocente e ingênua. Nada mais equivocado! A poesia de Adélia tem um agudo sentido da graça e da desgraça humana. 

Já em 2014, há 10 anos, Adélia via assim a situação do Brasil: “Vivemos um tempo triste, de uma ditadura disfarçada. (...) Eu tô muito impressionada com o Brasil. Eu acho que nós chegamos naquilo que Baudrillard chamava de ‘a transparência do mal’. O mal tá tão disseminado, tão enraizado, tão generalizado, que ele tá transparente. (...) tá tudo uma coisa ruim, sabe?, uma comida envenenada… os poderes da república estão assim… até o Supremo, né gente? Vamos combinar!”. Em 2014! 

Adélia é uma poeta católica. Mas o que quer dizer isso? Quer dizer que ela tem um tema, um conjunto de imagens, um tipo de linguagem, um ponto de vista? Não, nada disso! A poesia de Adélia é católica porque brota da sua experiência católica, centrada na contemplação do mistério da Criação e da Revelação, no mistério do ser e da linguagem. 

Certa vez, numa entrevista, ela disse:
 

“Uma das coisas mais felizes que eu acho é o filho de Deus ser chamado de O verbo Divino… Alguém chamou o filho de Deus de o Verbo Divino! Olha que coisa! São João. 'No princípio era o verbo era Deus e o verbo estava em Deus, e sem Ele nada se fez do que está feito'. Quer dizer, o Verbo Criador! Então nosso verbozinho, o nosso verbículo, ele é a tentativa de expressar o Verbo, quer dizer, a palavra por excelência. E a palavra por excelência é sentido, ela é tão real que ela toma um corpo, que é o Corpo de Cristo. O Corpo de Cristo é a palavra mais alta que pode ser dita. O corpo mesmo, sangue, ossos, alma, uma psiquê. Imagina! Deus com uma psiquê… É demais, né não?”

 

Repare nesse final despretensioso, nessa interjeição tão tipicamente mineira, de espanto e de encantamento. Ela não está explicando nada, ela está dando forma ao seu espanto diante do mistério da própria realidade como faz uma boa poeta.

Eu também não pretendo explicar a poesia de Adélia, que vai além dos prêmios e dos rótulos. Na verdade, eu gostaria de compartilhar com você meu olhar admirado para ela. Admirado e atento, profundamente atento à sua capacidade de produzir beleza com a matéria prima que é esse nosso verbozinho. Talvez fosse melhor ter apenas escolhido alguns poemas dela e dizer, leiam, encantem-se. Como não fiz isso, faço uma pequena reparação e concluo esse breve comentário com dois dos poemas de Adélia de que mais gosto. 


 

***


 

Do amor


Assim que se é posto à prova,

na cinza do óbvio, quando

atrás de um caminhão vazando

o homem que pediu sua mão

informa:

‘está transportando líquido’.

Podes virar santa se, em silêncio,

pões de modo gentil a mão no joelho dele

ou a rainha do inferno se invectivas:

claro, se está pingando,

querias que transportasse o quê?

Amar é sofrimento de decantação,

produz ouro em pepitas,

elixires de longa vida,

nasce de seu acre

a árvore da juventude perpétua.

É como cuidar de um jardim,

quase imoral deleitar-se

com o cheiro forte do esterco,

um cheiro ruim meio bom,

como disse o menino

quanto a porquinhos no chiqueiro.

É mais que violento o amor.


 

***


 

Missa às 10


Frei Jácomo prega e ninguém entende.

Mas fala com piedade, para ele mesmo,

e tem mania de orar pelos paroquianos.

As mulheres que depois vão aos clubes,

os moços ricos de costumes piedosos,

os homens que prevaricam um pouco em seus negócios

gostam todos de assistir à missa de frei Jácomo,

povoada de exemplos, de vida de santos,

da certeza marota de que ao final de tudo

uma confissão in extremis garantirá o paraíso.

Ninguém vê o Cordeiro degolado na mesa,

o sangue sobre as toalhas,

seu lancinante grito,

ninguém.

Nem frei Jácomo.

 

Luiz Carreira é escritor e professor de literatura. Autor de A Coisa Fora do Texto (contos) e O Mínimo sobre Criatividade (ensaios).

 


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