A QUEDA DA EUROPA

Moldávia: um pequeno país na mira das grandes forças globais

Brás Oscar · 23 de Abril de 2023 às 11:29 ·

Brás Oscar explica por que a República da Moldávia pode ser o próximo alvo do expansionismo russo

No início de março, uma antiga república soviética entrou no radar das agências de análises geopolíticas. A Moldávia, lugar praticamente ignorado pela mídia, foi tomada por protestos contra Maia Sandu, uma ex-conselheira do Banco Mundial, e primeira mulher eleita presidente de seu país, no governo desde dezembro de 2020, com o apoio do governo americano e da União Europeia.

Os protestos guardam muita semelhança com os que ocorreram nos últimos dois anos nas regiões separatistas da Ucrânia. Somando isso ao vazamento de um documento confidencial russo que liga Putin, agentes secretos e mercenários aos eventos recentes na Moldávia, a próxima patada do urso soviético já é previsível.

 

Maia Sandu, presidente da Moldávia

 


Os protestos

Em 23 de outubro do ano passado, cerca de 90 mil pessoas fizeram um protesto organizado pela oposição – liderada pelo partido Shor – contra o governo de Sandu. A multidão misturava separatistas, russófilos e opositores às pretensões do governo de se aproximar do Ocidente. As ondas de protestos duraram até o início de 2023.

No dia 10 de março, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, emitiu um anúncio durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca, afirmando que os protestos refletem uma situação de tentativa de desestabilizar o governo moldavo. No comunicado afirma-se que a inteligência americana tem motivos suficientes para acreditar que Putin está à frente da ação. Em certo trecho, lê-se que “agentes russos, alguns com vínculos atuais com a inteligência russa, estão tentando encenar e usar protestos na Moldávia como base para fomentar uma insurreição fabricada contra o governo moldavo”.

Logo após o comunicado dos americanos, já no domingo seguinte, a Moldávia assistiu a mais uma onda de baderna e protestos. Novamente, milhares de pessoas com a bandeira nacional foram às ruas do centro da capital do país, Chisinau, marchando em frente ao parlamento nacional e ao prédio sede do executivo, com cartazes pedindo o impeachment de Sandu.

Ao menos 54 manifestantes foram presos por violação da ordem pública. Quase metade eram menores de idade. A Polícia de Fronteira da Moldávia também informou que impediu a entrada de um mercenário do Grupa Vagnera, uma organização paramilitar russa – referida em português como Grupo Wagner – que atua prestando serviços de mercenários ao regime de Putin.

As ações do presidente russo durante os últimos anos na Ucrânia, Armênia e Bielorrússia seguiram um roteiro parecido durante os momentos que precederam outras ações que culminaram no controle político total do governo local após acordos unilaterais forçados, no caso da Armênia e Bielorrússia, ou numa invasão militar, no caso da Ucrânia.



O documento que vazou

No dia 14 março, os jornalistas Michael Weiss e Holger Roonemaa, em um artigo publicado na versão inglesa do Yahoo! News, afirmaram ter acesso a um documento secreto da Administração Presidencial de Putin que revela os planos de Moscou para a Moldávia. O documento seria originário da Diretoria Presidencial de Cooperação Transfronteiriça. Esse é o mesmo departamento público russo que produziu a estratégia do projeto – já de conhecimento público – de anexação da Bielorrússia.

A estratégia para a Moldávia, segundo o alegado documento, foi elaborada entre setembro e novembro de 2021, com contribuições do Estado-Maior da Rússia e do FSB – Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (Federal'naya Sluzhba Bezopasnosti Rossiyskoy Federatsii) – o serviço de inteligência russo que é o sucessor da KGB não apenas por uma mera continuidade cronológica, mas por ter absorvido sua infraestrutura e boa parte de seus recursos humanos.

A estratégia inicial da Rússia se concentraria em combater as tentativas dos Estados Unidos, União Européia, Turquia e Ucrânia de interferirem na política da República da Moldávia. Essa "interferência" alegada por Moscou teria como objetivo fortalecer a influência da OTAN e enfraquecer a esfera de influência russa na Europa oriental.

O plano de Putin ainda descreve como será conduzida a adesão (obviamente à força) da Moldávia à União Econômica da Eurásia, bloco liderado pela Rússia. Há também um planejamento para prever qual será, após a adesão ao acordo, a resposta do Kremlin tanto à União Europeia quanto à OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva), uma espécie de versão russa da OTAN, também controlada por Moscou e que inclui Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, e Tadjiquistão.

Outro ponto central do plano é neutralizar quaisquer ações do governo moldavo para expulsar uma futura presença militar russa na Transnístria, uma república separatista apoiada por Moscou, mas que é reconhecida internacionalmente como parte da Moldávia. Uma situação absurdamente semelhante à dos separatistas da região do Donetsk e Luhansk, na Ucrânia.


 

Por que a Moldávia?

Um dos motivos que tornam a Moldávia um alvo natural para Putin é sua localização, cravada exatamente entre a Romênia e a Ucrânia, sem litoral, fazendo fronteira apenas com esses dois países.

A Ucrânia tem parte importante de seu território (a Crimeia) já comandado por Moscou, e passa por maus bocados para conseguir acabar com a invasão russa. Assim como a Moldávia, a Ucrânia tem uma pequena região a leste que reclama uma identidade nacional diferente e exige independência, e tal grupo separatista busca apoio e financiamento russo.

A Romênia é uma espécie de “aquilo que a Rússia não quer que ocorra em seu quintal”: um país que já esteve totalmente no polo da influência do Kremlin, fez parte do Pacto de Varsóvia, mas após os anos 1990 resolveu virar as costas para o passado “oriental” e abraçar a nova ideia de Europa criada pela União Europeia. A Romênia é membro da OTAN desde 2004 e da UE desde 2007 e, apesar de ainda não ter adotado o Euro, já se comprometeu a cumprir as metas econômicas exigidas pelo bloco para trocar o Leu pela moeda única.

E a Romênia tem ligações profundas com a Moldávia, a começar pelo idioma.

Até o início de 2023 o texto da constituição da Moldávia declarava que o idioma oficial do país se chamava “moldávio”, mas isso era um mero formalismo com a intenção de reforçar a identidade nacional. Na prática todos referiam-se ao idioma como “romeno”, até mesmo nas escolas.

Tanto a Romênia como a Moldávia encontram-se em meio a uma área do Leste Europeu que, apesar de possuir uma população etnicamente composta por eslavos e outros povos do Cáucaso e Ásia Central, recebeu também uma forte influência cultural da Europa latina (a região era parte da província romana da Dácia).

Para o moldavo pró-Ocidente, falar romeno é falar uma língua latina, o que os torna culturalmente próximos da França, Itália, Espanha, Portugal e, obviamente, da vizinha Romênia, agora mais ocidental que há 20 anos. Essa mudança cultural reflete obviamente o desejo de afastamento do passado soviético e de uma identidade eslava.

Diferentemente da Ucrânia, que possuía uma economia um pouco mais desenvolvida, a economia incrivelmente fraca da Moldávia a coloca entre os países mais pobres da Europa, e se a guerra ultrapassar as fronteiras e chegar até lá, o resultado será catastrófico.

Maia Sandu foi eleita para conduzir a Moldávia à União Europeia e tirar o país do mapa da pobreza, e parece estar sendo bem-sucedida. A economista formada em Harvard disputou a presidência contra um candidato pró-Rússia e um ano após sua vitória, seu partido “Ação e Solidariedade” conquistou a maioria no parlamento e iniciou o processo de integração na União Europeia.

Junto da Ucrânia, a Moldávia obteve o status de candidata ao bloco europeu em agosto de 2022, e o apoio popular para ingressar no órgão chegou a 63%, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Republicano Internacional em novembro do mesmo ano.

A hipótese de Putin usar o movimento separatista da Transnístria como palco para seu "primeiro ato" é muito factível.  O próprio primeiro-ministro da Moldávia, Dorin Recean, que assumiu o cargo no começo deste ano, afirmou que ele e muitos em seu governo já sabem que “os russos tentam há muito tempo garantir que a Moldávia não tenha soberania sobre sua política externa”.

A sala de reuniões do gabinete de Recean é adornada com uma bandeira da União Europeia ao lado da bandeira da Moldávia.

 

Vladimir Putin: planos expansionistas


A Rússia vai invadir militarmente a Moldávia?

Uma previsão possível, com base na práxis russa, é que o controle de Moscou sobre a Moldávia ocorre em três etapas, divididas por setores:

- nos setores político e militar, por meio de parlamentares e generais russófilos;

- no setor de cultura e ajuda humanitária, através de ONGs, professores, mídia e formadores de opinião;

- nos setores do comércio e economia, pressionando acordos comerciais e empresas moldavas que dependem de setores da economia russa, como gás e energia.

O Kremlin deve trabalhar com um médio prazo até 2025 e com 2030 como data limite.

Dentro deste intervalo certamente veremos a criação de grupos muito estáveis pró-Rússia com muita influência nas elites políticas e econômicas da Moldávia.

É claro que o projeto da Rússia para a Moldávia, ao contrário do que houve com a Bielorrússia, pode ser frustrado, mesmo com o sucesso da implementação do projeto.

A Bielorrússia, ao longo dos últimos 20 anos, nunca buscou um afastamento do Kremlin e tornou-se mais dependente de Moscou à medida que consolidou um regime ditatorial. A Moldávia juntou-se à Ucrânia e Romênia para se afastar da órbita da Rússia e se aproximar do Ocidente.

A história recente não permite mais chamar de “teoria da conspiração” a tese de que a Rússia pretende, na prática, recuperar todos os antigos estados do bloco soviético. Além das situações da Bielorrússia, Armênia e Ucrânia, ainda há a situação da Geórgia, que foi invadida pela Rússia em 2008 num contexto muito semelhante: dois grupos separatistas, a Ossétia do Sul e a Abecásia, na Geórgia, financiados pela Rússia, iniciaram uma série de protestos e tumultos no país, justamente num momento em que o governo georgiano buscava relações mais estreitas com Washington e Bruxelas.

A Rússia encerrou a guerra em cinco dias, expulsando toda a população etnicamente georgiana das regiões separatistas, e transformou as duas áreas separatistas, na prática, em duas células russas dentro da Geórgia, que podem ser ativadas a qualquer momento.

Seria prematuro dizer que haverá logo uma invasão militar. Provavelmente esse é um plano B, que pode ser adiado ou antecipado, assim como foi feito com a Ucrânia por anos, caso não haja sucesso no domínio político completo, como ocorreu com a Bielorrússia.

Em setembro do ano passado, às portas do inverno no hemisfério norte, a Moldávia enfrentou um crise energética, afinal, como quase todos na Europa, eles também dependem do gás russo. Assim como fez com a União Europeia, a Rússia ameaçou aumentar os preços e cortar suprimentos para a Moldávia.

O governo de Sandu, desde então, buscou criar uma empresa nacional de energia avisando que não usará mais gás russo, e pela primeira vez em sua história pós-soviética a Moldávia posicionou-se publicamente a respeito do rompimento de uma relação comercial com a Rússia.


 

Ilan Shor e a esposa Jasmin: biografia de mafioso cinematográfico

 

Oposição, minorias étnicas e a Igreja Ortodoxa, todos na mão de Putin

O grito de independência está custando caro a Sandu. Os preços dos serviços públicos de gás, eletricidade e aquecimento foram às alturas e, aproveitando-se disso, o partido de oposição Shor começou a organizar protestos com a exigência de que o governo reembolse o público pelos altos preços dos serviços públicos.

Marina Tauber, vice-presidente do Partido Shor e principal organizadora dos protestos, nega veementemente que seu partido seja financiado pela Rússia. Mas é difícil negar que o Shor é um agente político russófilo.

O partido chamava-se “Movimento Social Político Igualdade”, porém em 2015 Ilan Shor praticamente comprou o partido e o renomeou com seu próprio sobrenome. Shor, de apenas 36 anos, é um oligarca, nascido em Israel, filho de imigrantes moldavos. Sua família voltou ao país natal nos anos 1990 e tornaram-se empresários. Ilan Shor tornou-se banqueiro, dono de time de futebol, bilionário, envolveu-se com fraudes internacionais e lavagem de dinheiro, foi preso em 2014, saiu da cadeia mais poderoso do que entrou, casou-se com uma popstar russa chamada Jasmin e recentemente tornou-se prefeito de uma cidade na região metropolitana de Chisinau. Uma biografia de mafioso cinematográfica.

O oligarca, segundo uma reportagem do Washington Post de 28 de outubro do ano passado, é chamado pela acunha de “o jovem” pelo FSB (antiga KGB), e, ainda de acordo com tal reportagem, foram interceptadas comunicações da FSB afirmando que estrategistas políticos russos foram enviados à Moldávia para ajudar o partido político de Shor.

Mas a ação política direta não é a única arma do rolo compressor de Putin. O documento que os jornalistas americanos alegam terem acesso afirma que se espera o apoio “da Igreja Ortodoxa Russa na defesa dos interesses da Ortodoxia canônica na Moldávia até 2030”. Trocando em miúdos, isso quer dizer que se espera que a Igreja russa use sua influência na Igreja moldava para que os devotos se posicionem a favor da Rússia.

Isso já ocorreu em 2020, durante as eleições presidenciais, quando Igor Dodon – candidato pró-Rússia – concorreu contra Maia Sandu. Os bispos moldavos passaram atacar publicamente Sandu, porém sem manifestar abertamente apoio a Dodon.

A Igreja moldava é a instituição pública mais confiável do país nas pesquisas de opinião popular e possui ótimas relações com a Igreja russa e seu chefe, o Patriarca Cirilo I de Moscou, que é um apoiador de Putin e foi membro da KGB durante o regime soviético.

Outro ponto importante é que a instituição religiosa tem uma presença fortíssima na região da Gagaúzia, ao sul do país. O povo gagauz é uma minoria de origem turcomana que se estabeleceu na Moldávia no século XII e se converteu ao cristianismo pela Igreja Ortodoxa. É até hoje o grupo étnico mais devoto à igreja moldava. Os gagaúzes, que já são fortemente pró-Rússia, provavelmente serão usados como massa de manobra para engrossar as manifestações separatistas da Transnístria caso Sandu obtenha sucesso em seu projeto de governo: convencer os moldavos de que a única forma de proteger sua pequena nação do passado soviético é tornar-se parte do projeto globalista ocidental.

O mais dramático de toda a situação é que ao tentar defender sua soberania nacional do plano de Putin, a Moldávia se joga nos braços da União Europeia, uma máquina progressista criada para destruir as soberanias nacionais. É como se jogar numa fogueira para fugir dos lobos. Aliás, esse parece ser o dilema de todos os estados soberanos do século XXI.

 


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