DIÁRIO DE UM CRONISTA

Minha mãe e meu pai

Paulo Briguet · 12 de Maio de 2024 às 08:39 ·

A saudade me mandou escrever sobre eles. E quem sou eu para desobedecer?

Por onde vou, carrego minha saudade. Dia e noite, ela sempre está comigo, mas tem vida própria. Às vezes fala alto, às vezes permanece calada, às vezes dorme e sonha, porém nunca morre. Viverá enquanto eu viver, por ser feita do mesmo tecido que compõe o coração. Tal como ele, tem movimentos involuntários. Hoje ela acordou e me disse:

— Paulo, escreva sobre seus pais.

Quem sou eu para desobedecer?

Minha mãe chorando na rodoviária, todas as vezes em que eu pegava o ônibus para Londrina. Meu pai fumando à noite no escuro da sala de estar e tossindo; sua tosse tinha a notável capacidade de embalar meu sono; se ele estava ali, nada de mau poderia acontecer. Minha mãe dizendo, sempre que levava um susto: — Jesus, Maria, José! Meu pai telefonando de manhã (eu sempre sabia quando era ele): “E aí, Paulão?”

Meu pai lendo um livro de Isaac Bashevis Singer, “Breve Sexta-Feira”, um dia antes de morrer. Minha mãe rezando todas as noites para que os anjos me protegessem em minhas noitadas de bar. Meu pai sendo abordado pelo vendedor de doces no clube de campo, e o homem a me dizer: “Menino, pode pegar os doces que você quiser. Seu pai salvou a minha vida!” Minha mãe sendo abordada por uma ex-aluna: “D. Aracy, você foi a melhor professora que eu tive!”

Minha mãe recusando-se a tomar banho no banheiro da República: “Eu não acredito que você vive numa pocilga dessas, meu filho!” Meu pai assistindo a um filme japonês comigo em um pequeno cinema da Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo. Minha mãe, em viagem aos Estados Unidos, tentando explicar ao guia americano que não queria fazer um passeio de helicóptero: “I don’t like to fly!” Meu pai contando suas histórias de morador da Casa do Estudante. Minha mãe acordando cedo para pegar três ônibus e dar aulas de História numa escola do Bairro do Limão.

Meu pai lendo o jornal na sala bem cedinho, tomando café. Minha mãe fazendo um chá de boldo para mim no Carnaval. Meu pai dizendo, antes que eu saísse para um churrasco na casa do Marcelo Rocha: “Paulão, exercício da moderação!” Meu pai indo comigo ao Bar do Nonoca, e misturando cerveja quente e cerveja gelada para não ter dor de garganta. Minha mãe tecendo um casaco de crochê para minha namorada — e a namorada se tornou minha esposa e mãe do meu filho.

Meu pai conhecendo a primeira netinha, que nasceu na primeira manhã depois do meu casamento. Minha mãe com o meu filho no colo, depois da cerimônia de batismo. Meu pai dizendo para mim, no escuro da noite: “Paulão, se um dia eu faltar, você é que será o responsável pela família!” Minha mãe olhando para o Pedro e encontrando nele os traços de meu pai. Meu pai me convidando para um passeio em volta do lago, depois de sua última quimioterapia. Minha mãe rezando com o Padre Oswaldo, uma noite antes de morrer. Meu pai jogando sinuca, me vencendo no xadrez, me ensinando a pescar. Minha mãe cantando no coral, passeando com a Rosângela, ninando o Pedro.

Vou fazer 54 anos. Acho que já ultrapassei a metade minha vida; deve ser por isso que a Saudade me mandou lembrar a vida inteira. Mas como esta crônica é pequena para tanto amor!

Paulo Briguet é filho de Aracy e Paulo.

 


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