Venha ver o fim do mundo
Enquanto o dia se disfarçava de noite, descobri que eu também, tolo calouro de 19 anos, era um cidadão do Apocalipse
Eu era um calouro de 19 anos incompletos. Não conhecia nada do mundo, nem da vida, nem da morte, nem do amor, nem do campus. Continuo ignorante, mas pelo menos agora sei que não sei.
Fez muito calor naquele meu primeiro verão em Londrina; um calor como nunca verão. Eu e você líamos, ou fingíamos ler, uns livros existencialistas na biblioteca do campus. Quando se aproximava o fim da tarde, você fechou o livro do Sartre, levantou-se e disse, no modo imperativo: “Vamos embora”.
Também fechei o meu livro, dando graças a Deus, porque não havia entendido uma linha daquele maldito Heidegger. Deixamos os livros na prateleira de devolução e saímos da biblioteca. Os dois volumes ficaram lá, olhando para o vazio: O Ser e o Tempo, Ser e Nada ou alguma coisa parecida. Nunca mais os vi.
Fomos andando silenciosos pelo calçadão do campus rumo ao edifício de Ciências Humanas. Alguns, vendo-nos assim, poderiam dizer que éramos namorados; acho que essa versão não lhe agradaria na época.
No caminho, passamos por um bando de manifestantes que carregavam faixas: “Movimento em Defesa do Ensino Público Gratuito e de Qualidade!”; “Exigimos as nossas verbas!”; “Autonomia já!”; “Fora Sarney!”; “Tiro ao Álvaro!”; “Não à privatização!”; “Viva, viva, viva a Universidade Alternativa!”
Notei que todas as faixas tinham um ponto em comum: o de exclamação. Não demos bola. Seguimos adiante.
Depois que os manifestantes ficaram para trás, você virou à direita e apontou o prédio de Ciências Humanas. Todas as salas estavam vazias; professores, alunos e funcionários participavam da Assembleia Geral Universitária. Você indicou as escadas e disse, agora em tom de sugestão: “Venha ver o fim do mundo”.
Não era sugestão que eu pudesse recusar, vinda de uma bela garota. Segui-a até o terceiro andar. Chegamos à sacada e, sem dizer uma só frase, ficamos a contemplar o horizonte.
O calor diminuía aos poucos, mas o que se via no horizonte era um incêndio. Londrina não entardece; Londrina sangra. Como é que uma cidade pode sobreviver a tal hemorragia diária? Por que as florestas, derrubadas há tantos anos, insistem em pegar fogo outra vez? Não há respostas, só mistérios. Mistérios que fazem um homem amar uma cidade, uma mulher.
Enquanto o dia se disfarçava de noite, descobri que eu também, tolo calouro de 19 anos, era um cidadão do Apocalipse. Compreendi que o pregador louco tem razão: “O fim está próximo”. Cada vez mais próximo. Escandalosamente próximo. Um dia a mais é um dia a menos. A passagem segue permanentemente aberta ― como a porta de uma república de estudantes.
Estávamos em 1989. Em junho, os estudantes chineses que pediam democracia seriam massacrados pelo governo comunista na Praça da Paz Celestial. Em novembro, o Muro de Berlim cairia, conforme pedira Ronald Reagan dois anos antes (“Mr. Gorbachev, tear down this wall!”). Em dezembro, Collor venceria Lula no segundo turno das eleições presidenciais. No dia de Natal, o ditador romeno Nicolae Ceausescu e sua mulher, Elena, seriam fuzilados por um tribunal de exceção.
Naquele dia de verão, acho que a Assembleia Geral Universitária aprovou a greve por tempo indeterminado. O mais importante, porém, é que eu olhei para o lado e você não estava lá. Desde o fim do mundo, nunca mais a vi.
― Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus.
(Crédito da foto: Pedro Scucuglia.)
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