Meu tio mendigo
Descobri que um antepassado com meu sobrenome era milionário, mas vivia pedindo esmolas na rua
Procurando textos velhos na Internet, leio uma notícia internacional publicada pelo Correio Braziliense em fevereiro de 1972:
MENDIGO — Em Guisa, na França, Jules Briguet, que passou a maior parte da vida pedindo esmolas, teve enterro luxuoso. Ele pediu que o valor de suas três casas e os 100 mil francos encontrados no saco de palha onde dormia nas calçadas fossem distribuídos entre os pobres.
Quem teria sido Jules Briguet? Talvez um parente distante, um tio que ficou na Europa quando parte da família, há muitos anos, atravessou o Oceano Atlântico.
Como a vida é estranha e imprevisível, tio Jules! Só agora, 52 anos depois, publico a sua história.
Já me disseram que a família Briguet tem algo de azul no sangue, mas nunca dei bola pra isso. Da última vez em que cortei o dedo, catando uma latinha de cerveja na Madre Leônia, enquanto passeava com o Cisco, o que jorrou foi vermelho como a terra. Vermelho é o nosso sangue, tio Jules, mesmo com um oceano azul e cinco décadas entre nós dois.
Há quem tenha orgulho de antepassados reis, príncipes, presidentes, generais, ministros, luminares das ciências e das artes. Pois eu me orgulho de você, tio Jules. Tinha três casas, mas preferiu dormir ao relento. A herança pagou o enterro e foi dividida entre os companheiros da rua.
De vez em quando eu dou esmolas, tio Jules. No entanto, ainda sou muito ligado às coisas deste mundo. Moro num país em que é difícil dar dinheiro (e amizade, perdão, ouvidos) a todos que pedem. Difícil, mas não impossível. Talvez, se eu renunciasse ao conforto em que vivo, aos prazeres que tenho, à segurança que preservo — talvez então eu pudesse ser amigo dos mendigos, dos doentes, dos afogados pelo mundo. Há quanto tempo eu vejo aquele velhinho ali da Praça da Bandeira! No entanto, sei lá por quê, nunca lhe dei uma moeda. Imagino você parecido com ele, tio Jules.
E de repente, pouco antes de eu começar a escrever este texto, começou a chover. É uma dessas chuvas fortes que o calor provoca nos finais de tarde, aqui na cidade onde eu vivo. Protegido pelo teto e pelas paredes, escrevo este breve relato a você, tio Jules, um homem que não conheci. Um homem que tinha coragem de enfrentar a chuva e o vento forte, sem escudos de cimento e concreto, e dormindo sobre um saco de palha.
Eu não tenho três casas nem dinheiro guardado, tio Jules. Mas não peço amizade, perdão, ouvidos, moedas. Procuro textos velhos na Internet; virei um mendigo das palavras.
— Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.
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