DIÁRIO DE UM CRONISTA

Encontro com o capitão Alberto

Paulo Briguet · 27 de Fevereiro de 2024 às 15:22 ·

De repente, na Avenida Paulista, foi pronunciado o nome de Alberto Mendes Júnior

Estive na Avenida Paulista no domingo e senti um nó na garganta quando Bolsonaro citou Alberto Mendes Júnior, o jovem policial trucidado pelos terroristas no Vale do Ribeira, em 1970.

A fala de Bolsonaro me fez voltar no tempo.

Faz 40 anos, mas eu nunca me esquecerei do dia em que dei as costas ao Marcelo. Lembro-me da cena com muita nitidez: na entrada do bar do DCE, senti o toque de mão de alguém no meu ombro esquerdo. Marcelo estava com a barba crescida e havia emagrecido muito, de modo que as pontas dos ossos malares se destacavam em seu rosto. Com um olhar de súplica, levantou a mão direita e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas eu não o deixei emitir uma só palavra. Virei-lhe as costas e caminhei com passo seguro, nem lento nem rápido, para o balcão, onde pedi uma catuaba. Nunca mais o vi.

Marcelo havia sido expulso do partido depois de um julgamento interno à revelia. Os motivos oficiais de seu expurgo foram traição e roubo; na verdade, todos sabíamos que o verdadeiro motivo fora um comentário crítico a Carlos Lamarca, numa reunião de célula. Marcelo ousara questionar o justiçamento de Alberto Mendes Júnior, um jovem de apenas 23 anos. “Nós temos as mãos sujas de sangue”, disse ele.

Dizem que Marcelo virou mendigo e desapareceu para sempre nos viadutos de São Paulo. Sempre que vou a São Paulo, lanço um olhar para os mendigos e cracudos do centro, cada vez mais numerosos, na secreta esperança de encontrar meu ex-companheiro.

Minha vida não tem sido fácil aqui na universidade. Desde que abandonei o partido, já era alvo de críticas, mas, depois do 8 de janeiro, transformei-me em pária.

Hoje me sinto hoje como um judeu na Alemanha dos anos 30. Alunos e professores me olham com ódio e desprezo; amigos de muitos anos deixaram de falar comigo; passei a ser atacado sistematicamente nas reuniões de departamento, sem que ninguém se levante em minha defesa. Uma colega foi duramente criticada pelo simples fato de que não me negou boa tarde. Estou esperando o dia em que vão colar uma estrela amarela na minha camisa.

Dias atrás, publiquei um texto na rede social, que recebeu 470 comentários, dos quais 469 continham ataques à minha pessoa, quase sempre incluindo as expressões “fascista”, “golpista”, “terrorista” e “mau caráter”. Apenas uma aluna, da pós-graduação, ousou me defender. Pois justamente essa aluna perdeu a sua orientação de mestrado.

Depois, durante uma aula, em meio ao pesado silêncio de 20 rostos fechados, uma aluna sorriu para mim. Depois, pela rede social, enviei-lhe uma inocente mensagem de agradecimento. Resultado: ela ameaçou me processar por assédio sexual. No mesmo dia, uma amiga de 30 anos virou-me as costas. Exatamente como eu fiz com Marcelo naquele dia.

Em casa, naquela noite, fiz algo que, por medo, jamais costumava fazer na infância: olhei para o espelho no escuro. Ali vi os rostos de meu pai, minha mãe, meu avô veterano de guerra. Depois, notei a presença um senhor idoso: era o capitão Alberto Mendes Júnior, caso não tivesse morrido nas mãos de Lamarca. Tomei um fôlego, acendi a luz, passei a mão pela barba crescida sobre o rosto ossudo e disse:

— Perdão, Marcelo.

Depois, voltei-me para o senhor de 76 anos:

— Perdão, Alberto.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"



ARTIGOS RELACIONADOS