Carta do ventre (para tia Rosa)
Do ventre da mãe, um bebê escreve para a tia Rosa do tribunal. Um poema do escritor Luiz Carreira em defesa da vida
Por Luiz Carreira
Do ventre
Para tia Rosa.
22 de setembro de 2023
Oi tia Rosa, tudo bem?
Eu queria escrever uma cartinha pro Papai Noel, mas acho que talvez não dê tempo.
Fiquei sabendo que hoje é um dia muito importante, e que a senhora está decidindo aí no tribunal o meu destino.
Fiquei sabendo que a senhora fez um relatório que não me leva muito em conta.
Por isso decidi mandar essa cartinha.
Fiquei sabendo que nesse relatório a senhora diz que alguns de nós somos feinhos, imperfeitos, e que somos um problema pros outros.
Dizem que a vida é uma festa. Eu queria lembrar à senhora que nós não pedimos para entrar nessa festa, nós fomos chamados e, quando abrimos os olhos, já estávamos aqui.
Além disso, eu também não acho a senhora muito bonita, não acho que a senhora seja perfeita, nem por isso defendo que a senhora não deva existir.
Muito pelo contrário! Tenho certeza que, apesar de parecer meio triste, a senhora deve ser a alegria de alguém.
Daqui da barriga da mamãe eu não posso me defender, não posso argumentar, mas eu queria ter a chance de entrar nessa conversa.
Talvez a senhora, acostumada à frieza dos códigos legais, não entenda como eu posso escrever essa cartinha.
Eu, que ainda não tenho linguagem, não tenho voz, como posso me meter nesse assunto?
Não tenho voz, não tenho linguagem, mas espero um dia ter, se a senhora e os seus amiguinhos deixarem.
Enquanto isso, eu tomei emprestado um adulto que escreve o que digo pra ele.
Você acha estranho isso?
Tem um amiguinho seu aí no tribunal, o tio Barroso, que pode te explicar esse procedimento. No caso do tio Barroso, ele acredita que se chama mediunidade.
O meu amigo escritor chama de ficção.
Mas o meu amigo escritor me disse que ficção não é a mesma coisa que mentira, que, aliás, a ficção de grandes escritores sempre foi um meio de imaginar a verdade.
Ele disse que o tio Aristóteles explica isso muito bem.
Eu não quero me meter nesse assunto, eu só queria que a senhora, ou acreditando na mediunidade do tio Barroso ou na ficção do tio Aristóteles, pudesse me imaginar porque eu sou de verdade.
Eu existo, e eu não sou uma ideia, eu não sou uma teoria, eu não sou uma tese política, eu não sou uma estatística,
eu sou uma pessoa que ainda mora na barriga da mamãe, como a senhora também já morou.
Aqui é um lugar muito bonito, sabe?
Não tem os luxos aí do supremo tribunal,
não tem prataria,
não tem funcionários,
não tem seguranças,
mas é um lugar ótimo de se estar, sabe? É a barriga da mamãe!
Eu não sei como eu vim parar aqui, mas sei que não quero sair de qualquer jeito.
Tanto é assim que na hora de sair a gente dá um trabalho danado.
A gente chora, a gente não entende, mas, depois, era tudo o que a gente queria porque daí a gente pode ver a cara da mamãe, a cara do papai, a gente pode ver as pessoas, e as pessoas podem finalmente ver a gente.
Às vezes a mamãe e o papai não querem ver a cara da gente.
Mas muita gente faz coisas ótimas depois de tristezas grandes.
Você sabe, tia Rosa, depois de sair daqui a gente começa a brincar de que tipo de gente a gente vai ser,
daí é bonito e perigoso porque a gente pode muita coisa, mas não pode tudo.
Tem gente que vai se tornando perigosamente triste,
ou perigosamente insensível,
ou perigosamente arrogante,
tem gente que não acha que é ninguém e tem gente que se acha o dono do mundo.
Já me disseram que vocês aí nessa coisa chamada supremo se acham donos do mundo,
mas eu sei que vocês são pessoas normais, e que correm também o risco de serem felizes.
É o que eu espero.
Espero que vocês sejam felizes, mas que eu também tenha o direito de ser,
que eu também tenha o direito de ser feliz ou infeliz, como vocês,
que eu tenha direito de ser bonito ou feio, como vocês,
que eu tenha o direito de ser imperfeito ou considerado perfeito como vocês.
Eu sei, tia Rosa, que a senhora é uma pessoa muito ocupada, muito importante,
e que eu pareço ser ninguém para estar aqui tomando seu tempo.
Às vezes a gente se acha um deus, sobretudo quando os outros nos tratam assim, mas na hora que a gente está sozinho, a gente sabe que isso é mentira, que a gente é frágil à beça, né?
Eu sei que há momentos em que a senhora, tia Rosa, sem ter em volta esse montão de gente que te trata como deus, sabe que é parecida comigo,
eu, que estou aqui sozinho na barriga da mamãe.
Pois então, mesmo sendo assim tão importante, mesmo parecendo deus, eu acho que a senhora poderia ouvir um pouquinho quem parece ninguém como eu.
Me disseram que Deus, mas Deus de verdade, esteve aqui na terra como gente, que viveu como gente, que também ficou na barriga da mamãe dele, que nasceu, que contou a sua história e que morreu.
Imagina, tia Rosa!, Deus já esteve aqui do jeitinho que eu estou e a senhora já esteve!
Então, dizem que uma vez pessoas importantes estavam jantando com Deus e ficaram bravas com ele porque ele dava atenção a uns pés rapados sem importância que estavam por ali, uma gente sem título, sem status, uma gente que muitos nem chamariam de gente como muitos não me chamam só por causa do meu tamanho e de onde eu moro.
Mas daí Deus deu uma bronca danada, e disse a eles que veio à terra por causa de todo mundo, inclusive e, sobretudo, desses tortinhos, esquisitos, errados.
Sabe por que eu lembrei dessa história? Se Deus que era Deus dava atenção aos mais fracos, aos mais errados, por que a senhora e os seus amiguinhos do supremo que só parecem deuses não podem me dar um pouquinho de atenção?
Eu só queria esse pouquinho de atenção para que vocês me colocassem na conversa.
Eu não sou uma coisa, eu não sou tema de discussão, eu sou uma pessoa.
Eu não me acho melhor do que você, tia Rosa, mas também não me acho pior.
Lembra que eu falei que aqui na barriga da mamãe é muito bom e que a gente dá um trabalho danado pra sair? Pois é, eu sei que é uma luta, mas a gente vai ter que sair, esse é o nosso destino.
O meu destino agora é nascer assim como o seu, que é uma adulta, é um dia morrer.
A gente não pode evitar isso, né?
Daí eu quero só te dizer que eu não queria sair daqui em pedaços,
não queria sair daqui morto,
eu não queria sair daqui lacerado por mãos e instrumentos que não me amam,
que, ao invés de um bercinho, vão me jogar no lixo.
Eu queria sair daqui na hora certa, do jeito certo, para tentar fazer a coisa certa,
que pode ser que eu não consiga,
mas eu queria ser o único culpado pelo fracasso ou pela felicidade das minhas tentativas.
Eu queria escrever a minha história antes de ser apagado pela sua borracha, aparentemente poderosa.
Ah, tia Rosa, tios ministros, me desculpem se fui um pouco emotivo e um pouco inconveniente nessa cartinha, mas é que o assunto é sério, e talvez eu não tenha outra oportunidade.
Muito obrigado,
alguns me chamam de feto, outros de amontoado de célula, outros até de coisa.
Eu ainda não tenho nome, mas espero ter.
Por ora, podem me chamar mesmo só de bebê.
— Luiz Carreira é escritor, palestrante e professor de literatura, história da arte e processo criativo. Autor dos livros “A coisa fora do texto” (contos) e “O Mínimo sobre Criatividade” (ensaio).
"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"