ENSINO SUPERIOR

“A universidade brasileira produz muito, mas sem qualidade”

Especial para o BSM · 15 de Março de 2020 às 17:52 ·

Carlos Adriano Ferraz, professor de filosofia da Universidade Federal de Pelotas, defende que a instituição precisa retomar seus propósitos de origem

Em 2005, enquanto o governo Lula divulgava o programa Universidade para Todos (Prouni), Carlos Adriano Ferraz, professor de filosofia que acabara de conquistar por concurso sua vaga na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), já criticava a iniciativa. Era uma voz isolada. Quinze anos depois, o professor defende as mesmas ideias.

“A universidade não é para todos. Ela representa o ensino superior, serve para pessoas específicas”. O acesso indiscriminado, diz ele, levou 25% dos doutores do Brasil estarem desempregados. “Conheço doutores em filosofia que trabalham em Uber”.

Mais recentemente, desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) deixou a presidência, vozes liberais e conservadoras começaram a ganhar força dentro das universidades – incluindo o surgimento, em 2019, do movimento Docentes pela Liberdade (DPL), que alerta para o fato de que, até 2023, o Brasil estará em último lugar no ranking de relevância na produção acadêmica.

Na entrevista, Carlos Ferraz, que iniciou sua carreira acadêmica na graduação da UFPel, em 1991, relata sua trajetória acadêmica (que inclui um período em que foi professor visitante na Universidade Harvard) e os motivos que o levaram a criticar o inchaço das universidades, que não se concretizou no aumento da qualidade na produção.

Quando o senhor se tornou crítico das propostas do PT para as universidades públicas?

Comecei a me posicionar quando fiz o concurso em 2005, estávamos ainda no governo do Lula. Quando eu conversava com meus alunos nas turmas, eu dizia: a universidade não é para todos. Na época, não houve muita polêmica porque o programa do governo era muito forte. Mas eu insisti, segui me posicionando. No entanto, com o passar dos anos, começaram a surgir algumas vozes dissonantes, algumas críticas, e então eu passei a chamar mais atenção, principalmente em 2018, quando eu comecei a publicar minhas opiniões, em jornais, sempre seguindo essa linha mais crítica quanto às políticas universitárias. Na minha opinião elas não deram certo, e hoje os números mostram isso. O tempo mostrou que eu tinha razão.

O senhor chegou a ser atacado?

Em abril de 2018, comecei a publicar minhas opiniões em jornais de grande circulação. Foi quando comecei a sofrer ataques. O primeiro artigo foi publicado num domingo, e na segunda-feira eu participei de uma em que deveria ser discutido o uso dos recursos do programa de pós-graduação. Essa reunião começou com a então coordenadora manifestando seu repúdio contra minhas posições públicas. Depois disso os ataques passaram a se repetir nos corredores, nas salas de aula, e sobretudo nas redes sociais. Embora eu não participe das redes sociais, ficava sabendo de vários ataques a mim e a minhas posições públicas.

Em agosto de 2019, a situação se agravou ainda mais depois que revelei os planos, da parte de membros da universidade, de atentar contra a vida do presidente. Em um grupo de WhatsApp de que participavam alunos, professores, servidores e até mesmo o reitor, discutia-se construir uma bomba, ou formas de atear fogo contra o presidente. Para a minha surpresa, houve uma reação totalmente agressiva contra mim, nosso centro acadêmico publicou uma nota de repúdio contra meu artigo. O curioso é que ninguém dentro da universidade questionou o teor das ameaças que eu denunciava, e que posteriormente seriam investigadas pela Polícia Federal. O episódio mostra que nossas universidades estão aparelhadas.

Qual é o alcance desse aparelhamento?

Se você acessar as páginas de internet do centro acadêmico, do Diretório Central de Estudantes, da associação de servidores, da associação de docentes, todos eles sustentem ataques contra o presidente, contra o ministro da educação, e isso desde 2016, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Essas instituições têm reiteradamente atacado o governo federal. São várias as ações desses grupos, ligados à universidade, visando desestabilizar o governo federal, simplesmente porque não é um governo de esquerda, alinhado à ideologia deles. Por que o nosso sindicato defende o aborto, por exemplo? O sindicato deveria representar os interesses do professor, exclusivamente, mas defende diversas pautas que não têm qualquer relação com os interesses dos docentes enquanto docentes. E são típicas pautas de esquerda.

Como o aparelhamento influencia no currículo dos cursos e na formação dos estudantes?

Se formos observar as disciplinas que são oferecidas e as obras que temos nas bibliotecas, a maior parte das obras são de autores de esquerda, o que orienta as pesquisas. Os alunos têm mais acesso a obras de esquerda do que a textos conservadores, liberais, e isso acontece porque a maior parte dos professores não trabalha com essas obras. Quando os docentes, solicitam que as bibliotecas comprem obras, recomendam obras alinhadas à esquerda. E as disciplinas vão nessa direção, de tal forma que é mais difícil trabalharmos autores conservadores, liberais, porque há pouco acesso. Quando ofereço disciplinas desses autores, sempre há uma resistência da parte dos estudantes. Essas disciplinas nós geralmente oferecemos como optativas. No nosso curso, sou o único professor que oferece disciplinas em autores como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Adam Smith. Já disciplinas sobre Foucault, Escola de Frankfurt, abundam.

A produção acadêmica também é estimulada nessa direção ideológica?

Sem dúvida. O estudante é estimulado a pesquisar autores de esquerda, porque ele vai ter mais facilidade em seguir adiante, encontrar orientadores, conseguir bolsas de estudo. Se o aluno manifestasse alguma tendência a estudar autores de direita, saberia que seria mais difícil ascender academicamente, ser aprovado num concurso, conseguir uma bolsa de pesquisa. Na própria seleção do programa de pós-graduação, já seria difícil entrar com um projeto envolvendo um autor liberal, conservador. Isso explica porque a maior parte das dissertações e teses trabalham com o que podem ser considerados autores de esquerda.

O momento político facilita esse tipo de pensamento crítico, não é?

Sim, agora estamos no momento político perfeito para tentar mudar essa situação. Mas, do ponto de vista estrutural serão mudanças lentas, porque, ainda que não representem a maioria, os estudantes, servidores e professores de esquerda estão nos postos-chave de poder dentro das universidades. Nosso reitor já foi fotografando confraternizando amigavelmente com membros do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O que vai causar uma mudança mais rápida é o surgimento de grupos como o Docentes pela Liberdade (DPL), em que os professores se encontram para, juntos, mudar a universidade. Temos que focar nesses professores que já estão nas universidades, que não concordam com essa ideologia e que querem de alguma forma mudar as coisas, com candidatos a ocupar espaços nos sindicatos, nas reitorias, nos departamentos. Temos que estimular professores que discordam dessa hegemonia de esquerda dentro das universidades, que discordam disso que eu chamo de modelo socialista de gestão universitária, que vige hoje dentro da universidade. São muitos os professores que discordam, e eles contam nesses movimentos formas de se juntar, eles descobrem que não estão sozinhos. Vários professores estão se conhecendo e percebendo que podem mudar as coisas de fato.

Qual a opinião do senhor sobre o Future-se, o programa proposto pelo atual governo?

É um programa excelente, que prevê trazer recursos da iniciativa privada. É um modelo que já existe nas universidades de ponta no exterior. Você vai no MIT e encontra laboratórios montados pela indústria farmacêutica. Mas a nossa universidade não aceita o Future-se, nosso sindicato também não, de tal forma que vamos continuar dependentes de recursos de pagadores de impostos, recursos que poderiam ser usados para outros fins. Na verdade o que essas pessoas querem é isso. A universidade tem uma aversão radical de qualquer possibilidade de contato com a iniciativa privada e com a sociedade em geral. Ele se comporta como um mundo à parte, como se não precisasse prestar contas a ninguém, muito menos à sociedade. Mas, quando precisa de recursos, exige mais dinheiro do governo. Parece que é um pecado mortal esperar dinheiro da iniciativa privada. Me causa tristeza ver que nossas universidades não têm visão empreendedora, não têm o objetivo de causar impacto positivo para a sociedade.

Qual é a função da universidade?

As universidades são mais um dos instrumentos de desenvolvimento social, material e espiritual, cultural, moral. A função primordial da universidade, quando ela surgiu na Idade Média, era a busca por verdade, justiça, liberdade, sabedoria. A universidade não surgiu desconectada do mundo, da vida real, ela foi criada com o propósito, bastante nobre, de elevar o sujeito, espiritualmente e materialmente, de forma a alcançar uma sociedade melhor. Não é o que vem acontecendo nas últimas décadas. Um dos filósofos mais importantes da história do Brasil, Mário Ferreira dos Santos (1907-1968), pouco estudado, escreveu um livro chamado A Invasão Vertical dos Bárbaros. É um trabalho profético, que mostra que a barbárie vem de cima para baixo, vem das universidades, da cultura mais elevada. E de fato é o que ocorre. Com o relativismo, o multiculturalismo, a universidade se afastou de seus objetivos iniciais. Hoje as universidades em geral, e as humanidades em particular, não fomentam mais nada. Não estão preocupadas com a verdade, nem a moral, nem a beleza. E isso tem impacto para a sociedade. Vários dos nossos problemas morais vêm dos desvios das universidades em relação a seus propósitos originários.

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