DIÁRIO DE UM CRONISTA

A Festa

Paulo Briguet · 1 de Abril de 2024 às 11:24 ·

Desde pequeno eu sonho em ser convidado para o Grande Dia

“Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela santa cidade,
Donde esta alma descendeu.”

(Luiz Vaz de Camões)

Desde pequeno eu sonho com a Festa. Uma das minhas mais remotas lembranças é o casamento da prima Beatriz, celebrado em Mirandópolis, na fazenda do Tio Izidro. Eu era muito novo, talvez não soubesse nem falar. Tenho recordações fragmentárias mas muito nítidas da Festa: as tendas construídas com bambu, cobertas do que me parecia um imenso lençol, o lençol de um personagem do seriado Terra dos Gigantes, e decoradas nas quinas com flores brancas e amarelas, enquanto por ali passeavam damas de honra sorridentes e garçons transitavam suarentos pelas mesas redondas, a uma das quais estavam sentados os patriarcas da família, inclusive Tio Abelardo, que anos depois se acidentou na Castelo Branco e quase morreu, por culpa da neblina. Quando me mostraram o estado do carro eu já era bem maior duvidei que alguém pudesse ter saído vivo daquele bolo de ferragens, que lembrava uma folha de papel sulfite amassada e jogada no lixo com um poema ruim, mas ao meu lado estava o Tio Abelardo, vivo e sorridente, sem sequelas, para me provar que sim, um milagre havia acontecido. E talvez o milagre seja a verdadeira Festa.

Sempre que passávamos em determinado trecho da Castelo Branco, em nossas viagens de férias, meu pai dizia:

Foi aqui que o Abelardo se estrepou.

Tio Abelardo viveria mais uns 20 anos depois do acidente, e eu voltaria muitas vezes à fazenda da Festa, sempre olhando esperançoso para a antiga casa senhorial do Tio Izidro, onde depois morariam o Tio Máximo e a Tia Lourdes, onde depois morariam o Junqueira e a Beatriz eram eles que haviam casado naquela tarde antiga. Mas nunca, nunca havia a Festa. Havia apenas a casa, que sempre me pareceu solitária e incompleta sem o lençol do gigante, sem os garçons suarentos, sem as damas de honra e as flores brancas e amarelas nas quinas de bambu, sem a Festa. E solitários e tristes eram o terreiro e a tulha de café, o pomar, o açude onde quase nunca pegávamos nada, com exceção de uns lambaris, e o brejo marcado pelas patas de vacas murmurantes e o bambuzal que gemia ao vento.

Mas e a Festa? Onde estará a Festa? Disseram que ela aconteceria durante o Campeonato de Handebol do Colégio Nossa Senhora Aparecida, para o qual eu me preparava treinando todos os dias a partir das 6h40 da manhã. Veio o Campeonato, fomos eliminados nas quartas-de-final pela equipe do japonês que era o mestre da cola (ele dedicava tanto tempo e estratégia a preparar as colas que a mim me parecia mais fácil estudar). Naquele dia, voltei para a casa à tarde cabisbaixo e desiludido a Festa era mintchura, como dizia a música da filha do Brizola que tocava no rádio. Até hoje eu sinto um frio na barriga quando olho para o relógio e são 6h40 da manhã.

Quando vim para Londrina e mudei para a República, meus pais achavam que meu objetivo era me formar em jornalismo, mas na verdade eu estava procurando a Festa. Juntei-me a um bando de meliantes meus companheiros de República e tentamos encontrá-la de qualquer jeito, sob a neblina da loucura. Bebemos tanto, farreamos tanto, alopramos tanto que o fato de a maioria de nós sobrevivido é um milagre bem maior que o do Tio Abelardo. Meu pai não está mais aqui; agora sou eu que digo quando passo em frente à pracinha da Rua Humaitá onde ficava nossa saudosa maloca:

Foi aqui que eu me estrepei.

Deixei a República há exatos 30 anos, mas a República não me deixou: acompanhou-me até o apartamento da Rua Cacilda Becker (Cacilda o quê?, perguntavam os entregadores) juntamente com os venenos espirituais de Marx, Lênin, Trotsky, Freud e Wilhelm Reich. Durante muito tempo vivi na certeza de que o verdadeiro nome da Festa era Revolução.

Mas não era isso que diziam os meus sonhos recorrentes: neles, alguém me convidava para o Grande Dia e eu tentava me preparar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Comprava roupas novas, passava um longo período de abstinência etílica, estudava cuidadosamente os mapas rodoviários para não errar a localização do evento, ensaiava um repertório de músicas e piadas e trocadilhos perfeitos para a ocasião (eu sempre quis ser o animador da Festa), MAS ah, que doloroso e melancólico esse MAS — alguma coisa acontecia. Ou eu acabava bebendo e dormindo e perdendo o horário, ou eu me perdia no caminho, ou alguém me barrava na entrada dizendo que eu não havia sido convidado, ou alguém me chamava para substituir o editor de primeira página de um jornal em que trabalhei muitos anos atrás (e por alguma razão eu não podia recusar o convite), ou a minha carona acabava me levando para um lugar triste, sombrio e subterrâneo ou, ou, ou... sempre ou.

Até que um dia eu descobri que a única maneira de estar na Festa é recusar os convites. Esse foi o dia em que nasci de novo.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus.

 


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