DIÁRIO DE UM CRONISTA

A ditadura de ontem e a ditadura de hoje

Paulo Briguet · 7 de Fevereiro de 2024 às 16:42 ·

Há 50 anos, os jornalistas sofriam a censura. Atualmente, os jornalistas defendem a censura  

“Essas pessoas não entendem que, ao se incentivar métodos totalitários, chegará o dia em que estes serão usados não a seu favor, mas contra você.”
(George Orwell, 1945)

 

Dia desses, minha amiga Paloma Scucuglia enviou-me um envelope alaranjado que pertenceu a seu saudoso pai, o jornalista e publicitário Pedro Afonso Scucuglia, a quem eu chamava carinhosamente de meu mais novo amigo de infância.

No início dos anos 70, antes de se tornar um dos mais importantes publicitários do Paraná, Pedrinho trabalhou como repórter e editor em diversos órgãos de imprensa. Um dos cargos que ele ocupou foi o de editor da antiga TV Tibagi, sediada em Apucarana, uma das pioneiras no telejornalismo paranaense.

Dentro do envelope alaranjado que me foi entregue pela Paloma, há 16 pedaços de papel amarelecidos pela ação do tempo. Esses documentos preservados por Pedrinho datam todos de 1973, durante a ditadura militar. São pequenas mensagens datilografadas referentes a assuntos que não poderiam ser noticiados.

Por esses textos de 51 anos atrás, podemos ter uma ideia de como funcionava a censura dos milicos:

 

ATENÇÃO
Por ordem superior fica proibida qualquer divulgação acerca do discurso pronunciado por Dom Helder Câmara na Assembleia Legislativa de Pernambuco.

 

ATENÇÃO
AVISO IMPORTANTE
Fica proibido divulgar qualquer comentário sobre as causas da renúncia do ministro Cirne Lima. Só pode noticiar que ele renunciou.

 

ATENÇÃO
Terminantemente proibido divulgar qualquer notícia ou comentário sobre a libertação de padres “subversivos” que estavam presos em São Paulo. A proibição é essa mesmo: libertaram os padres mas, para fins de noticiário, eles continuam presos.

 

ATENÇÃO
Além da bomba no Consulado dos EUA, está proibido também divulgar os atentados contra norte-americanos e empresas norte-americanas no Brasil. Sem notícias, nem comentários.

 

ATENÇÃO
Por ordem superior fica proibida a divulgação de notícia através de rádio, jornal e televisão do atentado a bomba havido na Linhas Aéreas Chilenas, na Guanabara, por, logicamente, terroristas...


ATENÇÃO
Proibido divulgar notícia da prisão de vereador mineiro e complô para tentar matar o Presidente Médici em Belo Horizonte.


ATENÇÃO
Por ordem superior, fica proibida a divulgação de qualquer notícia sobre a explosão de uma bomba, ontem, no Consulado Americano em São Paulo. Não é permitido divulgar nenhuma nota ou comentário a respeito da explosão, nem das razões que levaram os guerrilheiros a fazer isso.

 

Pelo teor das mensagens, pode-se notar que a censura do regime do glorioso Exército de Caxias era como toda censura: fundamentalmente burra e estúpida. Eu fico imaginando os pensamentos meu amigo Pedrinho recebendo esses avisos no estúdio da TV — e também a fileira de palavrões que ele devia soltar ao receber os recados da censura. A burrice dos milicos era tão grande, mas tão grande, que eles achavam melhor censurar Dom Helder do que responder a ele como fazia o grande Nelson Rodrigues. Uma só frase de Nelson sobre o arcebispo comunista — “Dom Helder só olha para o céu para ver se vai chover” — tem a força de um milhão de censuras.

É preciso lembrar que, na época, a maioria esmagadora dos jornalistas que trabalhavam nas redações de veículos como a TV Tibagi e o jornal Panorama eram adversários da ditadura e detestavam os milicos. Pedrinho era um deles. No entanto, esses jornalistas — quase todos sem diploma — não eram impedidos de exercer a sua profissão. Ninguém os proibia de ganhar o pão com o suor do rosto. Os jornais e as TVs não eram fechados, as contas bancárias dos opositores do regime não eram bloqueadas e os sigilos telefônicos dos adversários da ditadura não eram quebrados a mando do STF. Na verdade, só tinham problemas realmente sérios aqueles que estavam envolvidos com a luta armada e os movimentos terroristas.

Que diferença das redações de hoje! Na atual ditadura PT-STF, a censura é exercida pelos próprios jornalistas contra os cidadãos comuns. As mensagens do regime, que antes vinham por telefonemas à redação e eram conspicuamente datilografados pelo pauteiro, agora chegam pelo WhatsApp dos âncoras em linha direta com os ministros e aspones do governo. Antes os jornalistas eram proibidos de dar certas notícias verdadeiras que supostamente favoreceriam a oposição; agora alegremente transmitem as narrativas mentirosas que favorecem o regime do egresso penitenciário. Os Pedrinhos de ontem soltavam palavrões diante das ordens do regime; as assessoras de imprensa de hoje saúdam abusos e crimes oficiais com risinhos irônicos e comentários jocosos.

Ontem, a imprensa era calada pelo governo. Hoje, ela quer calar a sociedade. Hoje ninguém exige silêncio da imprensa: pelo contrário, ela voluntariamente silencia diante da prisão, da perseguição, do exílio e da morte de pessoas inocentes. Hoje a imprensa não reclama da censura: ela própria defende o cerceamento da liberdade de expressão.

Os jornalistas brasileiros não sabem, mas o seu modelo existencial é Walter Duranty — o correspondente que ocultou os crimes de Stálin. No entanto, assim como Duranty seria desmascarado por Gareth Jones — o repórter que revelou o Holodomor —, os colaboracionistas da imprensa brasileira um dia terão de responder pela perfídia que estão cometendo.

Então meu amigo Pedrinho, lá no Céu, vai dar boas risadas — e dizer uns palavrões.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus e O Mínimo sobre Distopias.

 


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