ESCÂNDALO

Jornal americano denuncia inúmeros casos de racismo e assédio sexual dentro do Fórum Econômico Mundial

Luís Batistela · 2 de Julho de 2024 às 19:49 ·

Ao jornal, funcionários, antigos e atuais, denunciaram casos de racismo, demissões sem justa causa e assédio sexual por parte de executivos e convidados VIPs contra funcionários da organização.

O jornal americano The Wall Street Journal (WSJ) publicou neste último sábado (29) uma série de alegações de racismo e assédio sexual envolvendo funcionários do Fórum Econômico Mundial (FEM), feitas por executivos e membros do alto escalão da conferência empresarial. O veículo entrevistou mais de 80 funcionários, antigos e atuais, que têm servido a organização desde a década de 1980. Segundo os interlocutores, várias ocorrências são atribuídas ao próprio Klaus Schwab, de 86 anos, engenheiro e economista fundador da entidade.

Incialmente conhecido como European Management Symposium (Simpósio Europeu de Gestão), ao longo dos anos o FEM atraiu um número cada vez maior de participantes em suas reuniões. A última edição, que contou com a presença de líderes políticos, CEOs e mais de cinquenta chefes de estado, demonstra a crescente relevância e influência do evento. As empresas desembolsam até US$ 658 mil (R$ 3,3 milhões) em taxas de associação anual, e os participantes frequentemente pagam quantias adicionais significativas para assegurar sua conveniência durante a conferência.

No entanto, conforme reportagem do WSJ, a organização, que se propõe a reunir “governos, empresas e sociedade civil para melhorar o estado do mundo”, e a coalizar “pessoas que têm o ímpeto e a influência para realizar mudanças positivas”, está envolvida em uma série de acusações, que incluem demissões sem justa causa, racismo e assédio sexual. O jornal americano, por meio de seus entrevistados, destaca que as condições de trabalho no FEM são, na verdade, a antítese das propostas messiânicas orgulhosamente compartilhadas pela entidade.

Há alguns anos, Schwab decidiu que a organização precisava passar por uma renovação, pois considerava que seus funcionários estavam envelhecendo e, consequentemente, não conseguiam manter um alto nível de produtividade. O engenheiro então instruiu seu chefe de recursos humanos, um executivo experiente chamado Paolo Gallo, a demitir um grupo de colaboradores com mais de 50 anos. Gallo imediatamente se recusou a executar a tarefa e, ao tentar articular com Schwab, argumentou que não havia uma justificativa plausível para as demissões em massa. Como resultado, Gallo também foi demitido.

Este pequeno episódio serve como uma epígrafe para entendermos o caráter autocrático de Schwab, conforme relatado pelo WSJ. Sigamos: em 2017, Schwab contratou uma jovem para liderar uma iniciativa de startups – empresas recém-criadas em fase de desenvolvimento. Sem se identificar, a jovem revelou ao jornal que descobriu estar grávida nos primeiros dias de trabalho. Inocentemente, ela foi até o escritório de Schwab em Genebra para informá-lo da novidade. Em resposta, o economista demonstrou estar 'chateado' ao saber que sua colaboradora não poderia mais manter o mesmo ritmo de trabalho devido à gestação. Como resultado, Schwab providenciou sua demissão, alegando que ela estava passando por um período experimental na organização.

Segundo o WSJ, pelo menos seis funcionárias foram demitidas ou viram suas carreiras ameaçadas durante a gravidez ou ao retornar da licença maternidade. Além disso, doze colaboradoras relataram ter sofrido assédio sexual de gestores seniores; outras duas afirmaram terem sido assediadas sexualmente por figuras VIP em reuniões do Fórum, incluindo eventos em Davos. Também há relatos de que as mulheres eram frequentemente sexualizadas e objetificadas no ambiente de trabalho. Colaboradores destacam que novas funcionárias eram advertidas no início de suas carreiras: se estiverem sozinhas com Schwab, devem estar preparadas para comentários desconfortáveis sobre sua aparência.

Uma ex-executiva de comunicações do FEM, Barbara Erskine, informou ao veículo que Schwab pediu a um membro do conselho que a alertasse sobre seu sobrepeso. Erskine explicou que Schwab chegou a comentar com outros executivos que ela não tinha “charme”. Uma recepcionista que trabalhava para Schwab disse ao jornal que ele a convidava para jantares e excursões particulares e, não raramente, precisava lembrá-lo de que o relacionamento entre eles era estritamente “profissional e nada sexual”. Também Myriam Boussina, assistente do engenheiro na década de 1990, alegou que Schwab elogiou o seu traje, corte de cabelo e corpo de forma completamente inadequada.

“Eu sabia que ele gostava de mim e sabia que ele me achava bonita (...). Todo homem com muito poder pensa que pode conquistar qualquer mulher e não tem vergonha (...). Você não podia reclamar, era impossível”, disse.

Uma funcionária europeia que trabalhou em Genebra na década de 2000 relatou que, embora Schwab nunca tenha ultrapassado os limites do contato físico com ela, seus comentários e comportamentos eram “uma coisa horrível para uma mulher passar”. Ela contou que, em uma ocasião, Schwab apoiou a perna em sua mesa com a virilha na frente de seu rosto, dizendo que gostaria que ela se vestisse como uma havaiana. Em outro momento, ele disse a ela: “Preciso encontrar um homem para você e, se não fosse casada, me colocaria no topo da lista”. Dois outros funcionários alegaram ter testemunhado a ‘cena da virilha’.

Em resposta, o porta-voz do FEM argumentou que Schwab jamais teria feito isso, pois o ato seria “nojento e incorreto”. Acrescentou também que o engenheiro não é familiarizado com trajes havaianos. O FEM rebateu todas as acusações sexuais contra colaboradoras, dizendo que “Schwab não se envolveu e jamais se envolveria em comportamentos vulgares” descritos precedentemente. No entanto, Farid Ben Amor, antigo executivo de comunicação social dos EUA que trabalhou na organização até 2019, deu o seguinte relato: “Foi angustiante ver colegas se afastarem (...) com o ataque de assédio por parte de funcionários de alto nível, passando de sociais e alegres para isoladas; evitando contato visual, compartilhando pesadelos durante anos”.

“White on Blue Action”

Segundo descrito por veteranos do FEM, "White on Blue Action" ("Ação Branca sobre Azul", em tradução literal) era um termo usado para descrever contatos sexuais entre VIPs e funcionários da entidade, devido à cor dos crachás usados pelas partes. Os veteranos disseram que Schwab gostava de contratar pessoas atraentes para o encontro anual em Davos, que, segundo eles, proporcionava um cenário ideal para assédios sexuais. “Havia muita pressão para ser bonita e usar vestidos justos”, destacou uma ex-colaboradora. “Nunca em minha carreira cogitei que a aparência fosse um tema tão importante como no Fórum”.

Martin, ex-funcionária do Departamento de Energia, disse que fez articulações internas para resolver os casos de assédio durante o seu exercício no conselho administrativo da entidade. Martin explica que incentivou os funcionários a denunciar quaisquer atos importunos e pressionou a organização para fortalecer o código de conduta em Davos, mas os membros do conselho classificaram suas ações como ‘exageradas’. Em 2018, Martin foi retirada de suas responsabilidades no departamento de recursos financeiros, o que a levou a renunciar ao cargo no final daquele ano.

Ainda em 2018, Justyna Swiatkowska abriu uma reclamação contra George Karam, um gerente do FEM, que, após levá-la para beber, desferiu toques indesejados e tentou beijá-la à força. Em um e-mail enviado ao RH da organização, e revisado pelo WSJ, Swiatkowska argumenta que “nos meses que se seguiram, este evento e a presença do Sr. Karam no Fórum deixara-me traumatizada e com medo de ir trabalhar (...). Também aprendi que não estava sozinha, pois havia outras mulheres com histórias semelhantes”. “O Fórum tinha conhecimento institucional sobre a predatória do Sr. Karam, pelo menos desde o momento da primeira denúncia, mas não fez nada durante quase três anos para impedir o assédio e cuidar das vítimas”, escreveu em outro e-mail enviado ao RH.

Oito anos antes, em 2010, durante uma campanha de vacinação contra a gripe, Malte Godbersen, atual chefe de tecnologia e serviços digitais, fez-se passar por médico para uma jovem funcionária. Ele a fez tirar a camisa e realizar movimentos em diferentes posições, alegando que era necessário para aplicar a vacina. Segundo a denúncia, quando o verdadeiro médico chegou ao local e a vítima percebeu o engano, Jeremy Jurgens, um funcionário da alta cúpula de Schwab, também apareceu no momento, rindo do ocorrido. Godbersen foi demitida meses depois. O FEM alegou que o episódio foi um ‘mal-entendido’ e que a colaborada apresentou um pedido de desculpas.

O “problema” dos bebês

A jovem das startups não foi a única a ser demitida por querer gerar um filho. Embora tenha publicado diversos materiais, como livros e artigos, destacando a importância de apoiar gestantes no mercado de trabalho, o FEM parecia admitir ou ignorar as condutas de Jungers. Os familiares de uma colaboradora afirmam que o membro da alta cúpula fez comentários humilhantes contra ela após o retorno da licença maternidade, repetidamente expressando desgosto por sua presença. Em 2018, quando a funcionária denunciou os atos de Jungers, o corpo administrativo a encaminhou para um terapeuta. O FEM alegou que as reclamações não descreviam um cenário claro de bullying.

Em 2021, a colaboradora engravidou novamente, mas perdeu o bebê por aborto espontâneo. Em um texto enviado ao marido, ela explicou como vinha trabalhando exaustivamente, porém não revelou que estava grávida. “Não é o tipo de lugar onde você pode declarar confidencialmente que está gravida para o seu gerente e esperar que a carga de trabalho seja aliviada enquanto tenta conciliar a exaustão do primeiro trimestre”. Topaz Smith, uma funcionária do escritório de Nova York que ingressou na organização em 2022, relatou que foi informada, apenas uma semana antes de retornar da licença maternidade, que seu cargo havia sido eliminado. Embora não houvesse problemas com o desempenho de suas funções, o FEM lhe concedeu 'misericordiosamente' uma função temporária de seis meses.

“É uma instituição psicologicamente violenta e não compreendo como é que eles têm a credibilidade para escrever este relatório sobre a disparidade de gênero e ditar como as economias e as indústrias são geridas a nível global”, disse.

Em resposta, o FEM alegou que oferece flexibilidade às gestantes quando solicitado – desde que seja possível.

Racismo

Funcionários negros do Fórum também relataram injustiças devido ao tratamento racista recebido pela entidade. Muitos foram preteridos em promoções ou excluídos do evento anual em Davos. Seis colaboradores informaram ao WSJ que seus chefes lhes deram feedbacks dizendo que não eram 'visíveis' o suficiente ou que precisavam 'sorrir mais' – fazendo referência à cor branca dos dentes – para obterem melhores oportunidades de trabalho.

Kimberly Bennett, uma funcionária negra que trabalhou em Genebra e auxiliou a liderar o grupo de recursos de funcionários negros, enviou uma carta ao RH alegando que os colaboradores negros não integraram as cotas de funcionários para o encontro em Davos. Bennett ponderou que “todos os membros do pessoal são brancos e da Europa”, embora a equipe contasse com diversos membros. “O que isso diz sobre o nosso compromisso com a DEI [Diversidade, Equidade e Inclusão] se a maioria dos representantes que escolhemos enviar para o nosso evento mais importante são brancos?”. Ao jornal, ela disse que não obteve resposta.

Entre 2022 e 2024, dois gerentes usaram termos como nigger, classificado como um insulto racial, na frente de suas funcionárias negras. Um dos gerentes era Jean-Loup Denereaz, antigo chefe de operações de Schwab. Diversos colaboradores acusaram Denereaz de realizar comentários desagradáveis ao longo dos últimos anos, incluindo um caso em 2017, quando uma mulher reclamou aos seus chefes que ele havia feito comentários inadequados diante de uma queixa de assédio sexual que lhe foi apresentada. Denereaz foi demitido em 2018, quando menosprezou uma mulher negra dizendo “O que você pode esperar de uma nigger?”.

Tiffany Hart, uma funcionária negra que trabalhou quase uma década no FEM, destacou que seu chefe em Davos a questionou sobre o uso de perucas. Além disso, enquanto acendia um fósforo, perguntou se poderia atear fogo nela. Em outra ocasião, Hart alegou que ele lhe dissera: “Se eu soubesse que você tinha dislexia, não teria contratado você!”. Apesar de ter denunciado o caso ao RH, o FEM informou que não estava ciente do ocorrido. Hart também vivenciou um terceiro incidente: quando o atual executivo sênior, Roberto Bocca, a repreendeu e a chamou de “vadia” em uma reunião online. Ela afirmou que o RH ignorou o caso, justificando que ele era apenas “italiano e muito apaixonado”. O FEM disse que o ocorrido foi tratado de forma adequada. Hart pediu demissão em 2022."

“Promovemos a inclusão e a melhoria da situação mundial e das questões das mulheres, mas fazemos o oposto”, disse ao jornal.

Em maio deste ano, Schwab anunciou que irá renunciar ao cargo de presidente executivo do FEM após 53 anos à frente da conferência empresarial. Fundado em 1971, a entidade tem realizado anualmente seus encontros em Davos, na Suíça. A organização, que tem um empreendimento com receitas anuais de 500 milhões de euros (R$ 2,8 bilhões), verá o cargo deixado por Schwab ser assumido por Borge Brende, atual presidente do conselho do FEM.

Com informações do The Wall Street Journal.

Título original: Behind Davos, Claims of a Toxic Workplace 

 


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