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Vai tudo muito bem no Rio Grande do Sul

Especial para o BSM · 13 de Maio de 2024 às 15:53 ·

A prudência manda seguir o conselho de Sua Excelência e aplaudir a ação estatal na tragédia gaúcha
 

Por Renan Rovaris

É preciso ter uma personalidade patriótica quase bovina para enxergar uma ou outra vantagem na burocracia estatal que, dizem as boas línguas, está gerenciando a crise no Rio Grande do Sul. Na semana passada, por exemplo, algum feed por aí me mostrou um vídeo onde milicos, numa disposição guerreira característica, dispunham-se em fila, jogando, de mão em mão, garrafinhas de água que viajavam uns quinze metros até chegar no caminhão camuflado, estacionado tristemente ao fundo da imagem, ainda quase vazio. O leitor, por certo, também testemunhou a pronta ação de nossas instituições num outro vídeo que mostrava um civil, à bordo de um caiaque movido a pedais, ultrapassando uma embarcação impulsionada pelos remos de vários soldados, que se esforçavam com o vigor atlético esperado de nossos militares. O gaúcho do caiaque, ciente, eu suponho, do papel indispensável das Força Armadas na situação, avisa: “Eu vou indo na frente! Se tiver alguma família precisando de ajuda, chamo vocês!”

Como eu não costumo falar bem do brasileiro, preciso reconhecer que fiquei surpreso quando vi gente ajudando gente, sem auxílio do braço forte ou da mão amiga, numa descentralização que me fez lembrar o sistema peer-to-peer de uma certa moeda digital — que prefere não utilizar os serviços do banco central e seus cuidados parentais para mediar transações. A ação humana, a caridade em tempos de crise, o instinto de sobrevivência da comunidade, correu para fazer o que era necessário que se fizesse, sem aguardar a liberação de documentos timbrados pelo governo, sem se importar com a burocracia de qualquer “ôtoridade”. As doações chegavam às toneladas, de caminhão, helicóptero particular, avião de empresário. Jipeiros foram onde veículos oficiais não se atreveram a ir, e um deles, dizem por aí — não sei se é verdade ou não —, precisou ser autuado pela imprudência de salvar pessoas sem usar o cinto de segurança. A bondade do brasileiro me surpreendeu, confesso.

Mas vocês também devem ter ouvido falar no pedido de investigação enviado à Justiça por uma de nossas autoridades picantes, para saber quem andou divulgando desinformação nas redes sociais. Segundo essa nossa autoridade, é preciso coibir certas notícias não qualificadas. Há um sem-número de relatos sobre o que está acontecendo com os gaúchos. Há gente dizendo e gravando muita coisa. O leitor deve ter ouvido falar. Não quero narrá-las aqui depois do conselho que nos deu Sua Excelência. O princípio da sabedoria, neste caso, está em repetir, com a voz pomposa da bancada do telejornal da noite, a versão autorizada dessa tragédia: depois do show da Madonna, vai tudo muito bem no Rio Grande do Sul.

Renan Rovaris é escritor e designer.

 


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