PRESO POLÍTICO

Teatro do absurdo: A escandalosa prisão de Filipe Martins

Paulo Briguet · 24 de Julho de 2024 às 15:02 ·

Defesa do ex-assessor presidencial faz novo pedido de soltura, desmoraliza narrativa dos encarceradores e lista negligências da dupla Moraes-Shor 

Polo: Assim, pois, tu preferes sofrer uma injustiça a praticá-la?
Sócrates: Eu não quereria nem uma nem outra coisa; mas se fosse imperioso ou praticar ou sofrer uma injustiça, eu preferiria sofrê-la a praticá-la.”
(Górgias, 469 c)

 

A prisão de Filipe G. Martins é o caso mais absurdo da Justiça brasileira em muitas décadas — uma espécie de síntese explicativa do apagar das luzes do Direito no país. Em 8 de agosto próximo, o ex-assessor internacional da Presidência da República completará seis meses de cárcere sem que haja qualquer evidência de crime contra ele e por um motivo que há muito tempo já foi esvaziado: a inexistente viagem de Filipe para Orlando (EUA) em 30 de dezembro de 2022.

Na última terça-feira (23), a equipe de defesa de Filipe Martins, liderada pelo desembargador aposentado Sebastião Coelho, fez mais um pedido de soltura do ex-assessor, anexando novas provas de que ele não fez a referida viagem (e é sempre bom lembrar: ainda que a tivesse feito, Filipe não estaria cometendo crime algum). Desta vez, os advogados de Filipe enviaram ao relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, novas provas de que Filipe não viajou para Orlando em dezembro de 2022:

1) A lista de viagens realizadas por servidores públicos elaborada pela Controladoria-Geral da União e registrada oficialmente no Portal da Transparência;

2) As informações contidas no Sistema de Concessão de Diárias e Passagens (SCDP), que faz o controle de todas as diárias e passagens emitidas para viagens oficiais no âmbito do governo federal.

Em ambos os sistemas de controle, o nome de Filipe Martins está ausente da lista de passageiros do voo presidencial realizado em 30 de dezembro de 2022 com destino a Orlando. Por outro lado, os nomes de outros servidores que efetivamente viajaram com Jair Bolsonaro — Mauro César Barbosa Cid (o delator de Filipe), Marcelo Costa Câmara, Tércio Arnaud Tomaz, Marcelo Zeitoune, Gustavo Suarez da Silva e Max Steinert — estão presentes tanto na lista da Controladoria-Geral da União quando na do Sistema de Concessão de Diárias e Passagens.

É importante lembrar que Alexandre de Moraes e o executor predileto de suas ordens — o delegado Fabio Alvarez Shor — poderiam ter acessado ambas as listas oficiais de controle de viagens, mas não o fizeram.

Esse é apenas mais um exemplo da falta de diligência da dupla Moraes-Shor (que em muito lembra a parceria entre Andrey Vyshinsky e Nikolai Yezhov na antiga União Soviética). Houve outros:

Moraes-Shor utilizaram como “prova” para prender Filipe Martins um documento apócrifo, obsoleto e editável encontrado no computador de Mauro Cid;

Moraes-Shor não oficiaram a Força Aérea Brasileira (FAB), a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) e as companhias aéreas que atuam no país sobre a suposta viagem do ex-assessor em 30 de dezembro de 2022;

Moraes-Shor ignoraram dados bancários, financeiros e telefônicos que comprovam a presença de Filipe Martins em Ponta Grossa, no Paraná, durante todo o ano de 2023 e início de 2024, o que inclui o endereço utilizado por ele para emitir cartões de crédito, receber boletos de contas, acessar serviços de delivery e locomoção (i-Food e Uber);

Moraes-Shor ignoraram, até o momento, os dados de geolocalização fornecidos pela operadora TIM que comprovam a presença de Filipe Martins no Paraná no período da viagem presidencial e posteriormente;

Moraes-Shor negligenciaram inúmeros procedimentos básicos dando início a uma sucessão de erros que culminaram na situação atual, quando as diligências que deveriam ter sido realizadas antes do pedido de prisão só começaram a ocorrer quando Filipe Martins já estava no cárcere.

Além de todas essas negligências, Moraes-Shor apreenderam ilegalmente os celulares da esposa de Martins, Anelise Hauagge, e da mãe do ex-assessor, Claudilene Garcia Pereira, na cidade da Votorantim (SP). Da mesma forma, foram apreendidos dois computadores dos pais de Filipe Martins. Ou seja, a dupla Moraes-Shor sentiu-se autorizada para devassar a família de Filipe, em claro procedimento de fishing expedition para encontrar “qualquer coisa”, sem definição e sem escopo. Em uma decisão histórica do ministro Eros Grau, no tempo em que havia alguma luz no Direito brasileiro, esse tipo de devassa familiar ensejou a concessão do Habeas Corpus 95.009/SP e foi considerada um procedimento nulo, por violar o princípio constitucional da pessoalidade da pena.

Mas a pessoalidade da pena nada significa quando estamos diante de alguém que o sistema considera uma não-pessoa. A situação de Filipe Martins lembra muito “O Rinoceronte”, um clássico do teatro do absurdo, escrito por Eugène Ionesco em 1959. No enredo da peça, todas as pessoas de uma pequena cidade começam a se transformar, por vontade própria, em rinocerontes. Apenas um homem — o protagonista Bèrenger — se recusa a passar pela metamorfose. No entorno de Filipe, muitos sucumbiram à tortura carcerária e se tornaram delatores-rinocerontes, com seus chifres apontados para o nada. Diante disso, é preciso recordar as palavras de Bérenger:

“Contra todo o mundo, eu me defenderei! Eu me defenderei contra todo o mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo até ao fim! Não me rendo!”

 


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