DIÁRIO DE UM CRONISTA

Sonho de um ex-ateu

Paulo Briguet · 17 de Novembro de 2023 às 16:42 ·

Uma lembrança dos tempos em que eu não acreditava em nada – só em minha própria solidão

Ontem eu conversei com um grupo de jovens – os Filhos do Trovão, alunos do Bernardo Küster – sobre os meus tempos de ateu e comunista. Um dos jovens me perguntou:

— Paulo, em que você acreditava quando não acreditava em Deus?

Acreditava em coisas muito ruins. Meus deuses naquele tempo eram a mentira, o poder, o prazer, o egoísmo. Como aquela serpente que engole a própria cauda, meu mundo começava e terminava em mim mesmo. Eu era igualzinho ao cego que ficava nas portas de Jericó. Mas sofria do pior tipo de cegueira: aquele em que o cego se acredita vidente.

Certo dia, já casado e convertido, cheguei em casa, pus meu filho na cama, dormi profundamente e tive um sonho. Sonhei que ainda morava sozinho no apartamento da Rua Cacilda Becker, afastado de todos que poderiam me amar. Senti no coração um peso inconcebível, que me trazia para profundidades abismais. Em certo instante, vi-me transportado a uma cidade de casas sombrias, fortificada por muros intransponíveis. Perguntei a um jovem de roupas escuras e olhar ausente:

— Qual é o nome deste lugar?

— Nós estamos em Jericó.

Numa casa iluminada por luzes vermelhas, uma pequena multidão dançava ao som de tambores frenéticos. Sem que ninguém notasse a minha presença, entrei no lugar. Uma mulher vestida de roxo, que passava com pressa, me ofereceu um copo de bebida amarga. Disse ela:

— Meu nome é Raab, não faça mal aos meus.

Enquanto ela desaparecia na balbúrdia, bebi um copo de aguardente de um só gole, fechando os olhos. Então eu vi as pessoas como se fossem enormes tições, pedaços de lenha ardente boiando no ar. Sobre cada um, havia uma chama vermelha. No meio da sala, abraçada em seus próprios joelhos, uma menina chorava. Acima dela havia uma pequena chama azul.

Saí da festa, aterrorizado, em busca de ar puro. Os tambores continuavam marcando um ritmo esdrúxulo. Mas, como por milagre, eu conseguia discernir os soluços da menina que chorava no meio da festa. Talvez Raab a conhecesse.

Caminhando em direção às muralhas, olhei para mim mesmo e percebi que estava vestido com uma manta de farrapos. Aproximei-me naturalmente dos portões da cidade; ali havia uma pequena pedra, sobre a qual me sentei. Nas folhagens dos arbustos, os pássaros anunciavam as primeiras horas da manhã.

Vi então um homem que se aproximava dos portões, seguido pelos seus discípulos. Gritei com força:

— Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim!

Alguns passantes tentaram me calar, mas eu gritei ainda mais forte:

— Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim!

Ele se aproximou e pôs a mão sobre os meus olhos. Perguntou o que eu queria.

— Que eu veja, Senhor.

E eu vi.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de O Mínimo sobre Distopias.

 


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