DIÁRIO DE UM CRONISTA

Sérgio Reis e o Rei Careca: O Brasil indiciado

Paulo Briguet · 5 de Julho de 2024 às 16:07 ·

O cantor de “Menino da Porteira” tem aquilo que os donos do país nunca terão: o amor do povo

Chegará o dia, meus amigos, em que teremos grandes dificuldades para contar aos nossos netos e bisnetos o que se passou no Brasil durante o regime PT-STF. Quando as crianças estiverem reunidas na sala, precisaremos recorrer à linguagem das fábulas e dos contos de fada para dizer:

— Era uma vez um país governado por um Rei Careca e um Velho Pelego... E eles queriam prender o Serjão.

O indiciamento de um dos maiores e mais queridos ídolos populares do Brasil, o cantor Sérgio Reis, de 84 anos, por “incitação a atos antidemocráticos” é uma daquelas páginas vergonhosas que o Supremo Soviete Federal — aquela banca de militantes esquerdistas sediada em Brasília — vem se especializando em escrever com seu português risível.

Tive a honra de conhecer o Serjão pessoalmente. Em 13 de março de 2020, o primeiro dia oficial de pandemia, fui recebido pelo “maior cantor do Brasil” — como ele gosta de se apresentar do alto de seus 2 metros — em seu sítio na Serra da Cantareira, em Mairiporã, município da Grande São Paulo. A Cantareira é um oásis milagrosamente situado no limite entre o inferno urbano da Pauliceia Desvairada e o santuário natural da Mata Atlântica. Serjão não escolheu morar naquele lugar por acaso; a Cantareira representa o elo entre a sua cidade natal, São Paulo, e o Brasil profundo, que ele retratou melhor do que ninguém em canções imortais como “Menino da Porteira”, “Chico Mineiro”, “Saudades da Minha Terra”, “Casinha Branca”, “Chalana”, “Filho Adotivo” e “Poeira”.

As músicas de Sérgio Reis compõem uma espécie de mosaico simbólico da alma brasileira. Nos versos cantados por sua voz grave e afinada, temos o retrato de um povo que trabalha com afinco e sofre com as asperezas da vida, mas jamais perde a esperança, mesmo diante da tragédia. Ninguém pode dizer que é brasileiro sem conhecer os versos da canção gravada por Serjão há 51 anos:

Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino
De longe eu avistava a figura de um menino
Que corria abrir a porteira e depois vinha me pedindo
Toque o berrante, seu moço, que é pra eu ficar ouvindo

Em “Chico Mineiro”, outro gigantesco sucesso de Serjão, temos a melancólica história de um homem que precisa passar pela experiência da dor e da morte para descobrir que um parceiro de trabalho era, na verdade, o seu irmão de sangue. E a revelação se dá durante uma festa do Divino Espírito Santo — Aquele que sopra onde quer. Na épica “Poeira”, Serjão canta as origens primordiais de nosso povo moldado pela terra, o trabalho e a fé:

Poeira entra em meus olhos, não fico zangado não
Pois sei que quando eu morrer, meu corpo vai para o chão
Se transformar em poeira, poeira vermelha, poeira
Poeira do meu sertão

É por essas e muitas outras razões que Sérgio Reis se tornou uma personalidade amada em todo o Brasil. Há mais de meio século, ele é celebrado por onde passa, exatamente o contrário do aconteceria com o Rei Careca, se as pessoas no Brasil pudessem dizer o que pensam. Serjão tem aquilo que o Velho Pelego, se algum dia conheceu, perdeu para sempre após o Mensalão e o Petrolão: o amor do povo. Pois Sergio Reis — à semelhança de Dom Quixote, e ao contrário do Careca e do Pelego — pode dizer com segurança: “Eu sei quem sou”. Ele é o menestrel, o cantador, o violeiro que conhece o amor e a saudade, a luta pela sobrevivência e a contemplação da realidade, o riso e as lágrimas, a cidade e o sertão. Já conheceu até Brasília — no período de quatro anos em que foi deputado — mas se encontrou, de verdade, no Brasil.

Há três anos, quando agentes da PF estiveram em sua casa, pouco antes das grandes manifestações pacíficas de 7 de setembro de 2021, as quais ele está sendo acusado de “incitar”, é possível que, por um instante, tenham percebido o absurdo que faziam ao tratar como criminoso o autor dos versos que certamente cada um deles ouvira na infância:

No caminho desta vida muito espinho
Mas nenhum calou mais fundo do que isto que eu passei
Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei
Vendo a porteira fechada, o menino não avistei

Ao lançar suas longas tranças contra Sérgio Reis, o Rei Careca não está apenas sendo injusto com um homem idoso, pacífico e inofensivo. Ele está mais uma vez mostrando que sua guerra contra o povo brasileiro não conhece limites. Fazer isso com Serjão equivale a prender Chico Mineiro, o Menino da Porteira e os milhões de fãs de diferentes gerações, profissões e classes sociais que decoram (ou seja, guardam no coração) o repertório que marcou suas vidas.

E tudo isso está acontecendo porque, de fato, no país comandando pelo Rei Careca e o Velho Pelego, não há lugar para um gigante chamado Sérgio Reis.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus.

 


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