DIÁRIO DE UM CRONISTA

Pequena história da blasfêmia

Paulo Briguet · 31 de Julho de 2024 às 16:30 ·

A blasfêmia é tão antiga quanto a religião; na verdade, tão antiga quanto a criação. 

A blasfêmia é tão antiga quanto a religião; na verdade, tão antiga quanto a criação. A serpente do Paraíso é o primeiro blasfemador da história — e obteve êxito. Na segunda criação do homem, a ofensa a Deus também estava presente. Além de ter sido acusado de blasfemar pelas autoridades religiosas de sua época, Jesus Cristo foi vítima de blasfêmias no momento em que estava pregado à cruz, sofrendo dores lancinantes: “Ele salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo! Se é rei de Israel, desça agora da cruz e nós creremos nele!” (Mt, 27,42) Por isso, não me escandalizo com as blasfêmias contemporâneas, como essa que vimos na abertura das Olimpíadas. Só sinto uma profunda pena, uma invencível vontade de rezar pelos blasfemadores. Acham-se ousados, não sabem como são típicos. Um dia terão consciência do erro que cometeram.

Uma das mais antigas imagens pictóricas do cristianismo — talvez a mais antiga — é um ato de blasfêmia. Trata-se do grafite de Alexamenos, encontrado durante escavações no Monte Palatino, em Roma, no ano de 1875. Calcula-se que o grafite seja do século III da era cristã. O desenho em gesso mostra a crucificação de um burro, tendo a seus pés um fiel em atitude de adoração. A legenda, em grego, diz: “Alexamenos adora seu deus”. Imagine-se que Alexamenos seja um cristão dos primeiros tempos, ridicularizado por seus colegas:


 

A propósito, o burro é um animal que possui um papel relevante na história da salvação. Como se sabe, Jesus adentrou a cidade santa no Domingo de Ramos montado em um jumentinho. Ali, ele foi aclamado pela multidão:

— Bendito o rei que vem em nome do Senhor!

O jumentinho que Jesus montou antes da entrada em Jerusalém fora buscado por dois discípulos nas cercanias do Monte das Oliveiras. Jesus dera aos dois discípulos uma orientação bastante precisa: eles encontrariam o animal amarrado na entrada do lugar e o desamarrariam. Quando os donos do animal perguntassem por que estavam fazendo isso, eles responderiam:

— O Senhor precisa dele.

O Senhor precisa dele. Tenho por hábito me colocar no lugar dos pequenos personagens do Evangelho. Fico imaginando o que teria se passado pela mente do proprietário do animal diante desta misteriosa frase. O Senhor precisa dele — para salvar o Universo.

Enquanto Jesus entrava em Jerusalém, o povo ia estendendo mantos ao longo do caminho. Os mais pobres, porém, não tinham mantos para estender, então usavam os ramos das plantas que estivessem à mão.

Tristeza! Quatro dias depois, muitos desses adoradores prefeririam libertar Barrabás e condenar Jesus. Tudo porque Jesus não era o tipo de rei que eles esperavam.

Qual teria sido o destino do burrinho emprestado por Jesus para entrar em Jerusalém? Teria sido devolvido aos donos? É provável que sim. Mas saberiam esses donos que o animal havia conduzido o próprio Salvador? São dúvidas que só poderei esclarecer quando conseguir falar com Deus.

Há alguns anos, li um livro pequeno, mas precioso, intitulado “Elogio do Burro”, do célebre escritor e diplomata J.O. de Meira Penna (1917-2017).

A obra não faz um elogio à burrice, mas sim uma espécie de desagravo literário a esse simpático animal. Meira Penna, com magnífica inteligência e erudição, demonstra que o burro, ao longo da história, simboliza a humildade, a persistência, o sacrifício e a inocência.

Encerro essas reflexões e começo com um poema do grande escritor católico G. K. Chesterton, traduzido magistralmente pelo professor Sérgio Pachá:

Quando os peixes voavam e as florestas

Moviam-se e espinheiros davam figos?

No momento em que a lua era de sangue,

Eu decerto nasci: tempos antigos.

Com uma cabeça enorme e um grito ascoso

E orelhas duas asas berrantes ,

Sou a paródia mesma do demônio

Por entre todos mais quadrupedantes.

A andrajosa escumalha deste mundo,

Cuja perversidade não tem fim,

Escarnece-me, bate-me, esfomeia-me,

E guardo o meu segredo para mim.

Estultos! Eu também tive uma hora,

Distante e doce e minha – uma hora ardente:

Bradava a multidão à minha volta

E espalhava-me palmas pela frente.


Quando você for ridicularizado por causa de sua fé, lembre-se de Alexamenos, de Chesterton — e sobretudo daquele Rei que entrou em Jerusalém montado em um burrinho.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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