BRASIL

Pelé: Lágrimas por um Rei

Paulo Briguet · 29 de Dezembro de 2022 às 17:51 ·

Maior jogador de futebol de todos os tempos, Edson Arantes do Nascimento deixa o campo para entrar na eternidade

 

Fecham-se as cortinas, termina o espetáculo. Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, deixa o campo para entrar na eternidade. Tricampeão mundial pela Seleção Brasileira, bicampeão mundial pelo Santos, autor de 1.283 gols, eleito Atleta do Século, Pelé é indiscutivelmente o maior jogador de futebol de todos os tempos. O ídolo da Camisa 10 partiu na Oitava do Natal, quando os corações de todos se enchem de saudade e o sentimento de pertencer a algo maior que a vida material está mais vivo do que nunca dentro das almas. Não existem meras coincidências nas quatro linhas desta vida: o Rei do Futebol encerrou sua última partida no aniversário do Rei dos Reis.

Pelé foi chamado de Rei pela primeira vez em uma crônica de Nelson Rodrigues, publicada na Manchete Esportiva, em 8 de março de 1958. Nelson maravilhou-se com a atuação do jovem atacante na vitória por 5 a 3 do Santos sobre o América do Rio, no Estádio Mario Filho, também conhecido como Maracanã. Pelé fez quatro dos cinco gols santistas. O escritor espantou-se com a idade do goleador: “Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais”.

Na simbologia clássica, o rei é a imagem da autoridade, do equilíbrio e do autodomínio. Os emblemas do seu poder são o cetro, o trono, o pálio e a esfera — a bola. “O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés”, escreveu o cronista naquele dia. Se só os profetas enxergam o óbvio, como dizia um personagem de Toda Nudez Será Castigada, é óbvio que Nelson estava sendo profético. Apenas quatro meses depois daquela partida contra o América, Pelé reinaria na Suécia.

Na mesma crônica de Nelson, há outra profecia menos lembrada: a de que Pelé enterraria o complexo de vira-latas, que assombrava a alma brasileira desde a derrota para o Uruguai na final da Copa de 1950, o trágico Maracanazo. “Com Pelé no time, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.” Só os profetas enxergam o óbvio.

Aos 9 anos de idade, Pelé vira o seu pai, Dondinho, chorando diante do rádio depois da derrota do Brasil. Abalado — era a primeira que via o pai em lágrimas —, o menino prometeu:

— Pai, um dia eu vou trazer a Copa para o Brasil.

Oito anos depois, era a vez de Pelé de chorar — mas de alegria. Depois da vitória de 5 a 2 sobre a Suécia, na final da Copa de 1958, o adolescente Pelé chorou abraçado ao goleiro Gilmar, numa das cenas mais comoventes da história dos mundiais. Com aquela conquista, Pelé tornou-se o jogador mais jovem a sagrar-se campeão do mundo — tinha 17 anos e oito meses quando o Brasil levantou a taça. Com aquele time dos sonhos — em que também brilhavam Garrincha, Nilton Santos, Djalma Santos e Didi — Pelé fez seis gols. O último gol contra os donos da casa, na final, é uma obra de arte do futebol.
 

 

Os números de Pelé são simplesmente assombrosos. Foram 1.283 gols em 1.363 jogos, numa impressionante média de 0,94 gols por partida. Em três temporadas o atacante do Santos e da Seleção ultrapassou a média de 100 gols marcados: 1959 (126 gols), 1961 (111 gols) e 1965 (105 gols). Ao longo da carreira, assinalou hat-tricks (ou seja, três gols na mesma partida) em 92 ocasiões, contra 58 de Cristiano Ronaldo e 54 de Lionel Messi. Fez 4 gols numa só partida por 30 vezes; 5 gols, por sete vezes; e inacreditáveis 8 gols numa só partida contra o Comercial de Ribeirão Preto, pelo Campeonato Paulista de 1964. Títulos? O único jogador a vencer a Copa do Mundo por três vezes (1958, 1962 e 1970), duas Libertadores da América pelo Santos (1962 e 1963), dois Mundiais Interclubes (1962 e 1963), seis títulos brasileiros (1961, 1962, 1963, 1964, 1965 e 1968), dez Campeonatos Paulistas (1958, 1960, 1961, 1962, 1964, 1965, 1967, 1968, 1969 e 1973) e um título da Liga Norte-Americana de Futebol (pelo Cosmos, em 1977).

Nascido em Três Corações, Minas Gerais, filho do atacante Dondinho e da dona de casa Celeste, o futuro Atleta do Século foi batizado com o nome de Edson Arantes do Nascimento em homenagem ao empresário americano Thomas Alva Edison (1847-1931), o inventor da lâmpada. Ao escolher o nome do filho, Dondinho parecia ter em mente que o menino iria oferecer algo de luminoso para o mundo. O apelido Pelé se originou da admiração que o pequeno Edson tinha por um goleiro, o Bilé, camisa 1 do Vasco da Gama de São Lourenço, um time em que Dondinho atuou por alguns anos. Nas peladas de rua, Edson gritava:

— Vai, Pilé! Segura, Pilé!

O menino não conseguia pronunciar a letra b — e assim nasceu o nome de um monarca. Ironicamente, um dos maiores terrores dos goleiros em todos os tempos atendia pelo nome de um guarda-metas. Uma dificuldade semelhante, embora oposta, faz com que os povos árabes não consigam pronunciar adequadamente o nome do ídolo. Segundo a jornalista e escritora Paula Schmitt, correspondente internacional que já morou em 13 países, Pelé é absolutamente reverenciado nos países árabes. Mas, como a língua das Mil e Uma Noites não tem o fonema correspondente à letra p, todos gritavam quando Paula revelava ser brasileira:

— Brasil, Belé! Brasil, Belé!

“Em certas ocasiões, eu não podia dizer que era brasileira, senão as pessoas só queriam falar de futebol!”, diz Paula Schmitt. Na opinião dela, Pelé fez mais pela imagem do Brasil no exterior do que todos os esforços diplomáticos da história do Itamaraty.

Nos anos 90, um jornalista brasileiro fazia a cobertura uma guerra civil em um país da África, quando durante uma viagem teve seu veículo abordado por uma milícia nada amistosa. Aos gritos, os guerrilheiros ordenaram que o jornalista saísse do carro. Ele obedeceu. Os milicianos usavam um dialeto local, incompreensível para o repórter. Tentar falar inglês, nesse caso, seria suicídio; se fosse identificado como americano, o jornalista poderia ser executado na hora. Sob a mira das metralhadoras, ocorreu-lhe uma ideia salvadora:

— Brasil, Pelé! Brasil, Pelé!

Ao ouvir o nome do rei, os guerrilheiros imediatamente se abriram em sorrisos e deixaram o jornalista prosseguir viagem. O mesmo aconteceu em 1994 com o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que cobria a guerra civil em Ruanda entre as etnias tutsis e hutus. Confundido com um francês por um grupo de tutsis a França era associada aos hutus , Salgado estava para ser fuzilado quando revelou que era do Brasil, “país do Pelé”. Em 1969, durante a guerra de Biafra, na Nigéria, Pelé participou de um jogo do Santos contra um combinado local. Reza a lenda que os dois lados em conflito teriam anunciado um cessar-fogo por causa de Pelé. Não foi bem assim – parece que o governo nigeriano usou a presença de Pelé como propaganda de guerra mas um fato é incontestável: nenhum exército ou milícia atacaria um estádio em que Pelé estivesse jogando. Ele era amado em toda a África.

Certa vez conversei com um empresário de Bauru que serviu Exército com Pelé, em 1959, e teve a oportunidade de jogar com o ídolo nas Olimpíadas do Exército.  Esse empresário me contou que quando Pelé era adolescente, a Liga de Futebol Amador de Bauru estabeleceu uma nova regra: Pelé podia atuar, mas, em nome do equilíbrio entre as equipes, estava proibido de passar da linha do meio de campo. Mesmo assim, o time de Pelé foi campeão. Nessa época, o garoto Edson costumava matar aula e deixar o seu material escolar escondido na lavanderia de Shinki Yafushi, o Seu Antônio, a quem tive a honra de conhecer. Certo dia, a professora descobriu o truque, chamou Pelé e disse uma das frases mais infelizes da história:

Edson, futebol nunca deu camisa pra ninguém...

Minha mãe contava que eu pulei de alegria na barriga 19 dias antes de nascer, quando Pelé deu aquele passe antológico para Carlos Alberto Torres fechar a goleada na final contra a Itália, em 21 de junho de 1970. Naquele dia, o choro de Dondinho em 1950 e o de Pelé 1958 se tornaram a alegria esfuziante de um grande Rei. Que os brasileiros sem medo tenham uma certeza: nossas lágrimas de hoje se transformarão na vitória de um Rei infinitamente maior.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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