DIÁRIO DE UM CRONISTA

O último pioneiro

Paulo Briguet · 31 de Maio de 2024 às 17:34 ·

Uma homenagem aos heróis que desbravaram a cidade de Londrina
 

O velho sempre acordava antes do Sol. Naquela manhã não foi diferente. Mas, apesar de um antigo hábito, ele não quis rezar. O escuro ainda era profundo; os pássaros não haviam começado a algazarra. Ao longe, ouvia-se a voz de um jovem bêbado remanescente da noitada. Chovera; o velho sabia disso porque um automóvel havia acabado de passar pela avenida — talvez também egresso da farra — e os pneus haviam produzido o som característico do asfalto molhado.

Nas outras manhãs, O velho sempre rezava aos santos de Deus. Não se considerava digno de elevar a palavra diretamente ao Criador. Deus tinha muitos afazeres, ele pensava, não era bom que perdesse Seu precioso tempo com um homem sem importância. O velho rezava aos santos, intermediários de respeito; no entanto, mais próximos da miséria humana. Mesmo assim, fazia uma espécie de escala para não sobrecarregar nenhum deles; se ontem houvesse rezado para São José, hoje falaria com São Francisco de Assis; depois, seriam as vezes de Santa Cecília, Santo Antônio, São Paulo, Santo Expedito, São Roque, São Longuinho, São Benedito, Santa Clara e, claro, Nossa Senhora Aparecida.

E rezava também — isso ele não diria a ninguém — para alguns santos que conhecera em vida: seus pais Maria e Orestes; sua irmã, Margarida, que morrera de tifo aos três anos de idade; o Padre Ranulfo, seu antigo confessor; o desconhecido cujo nome ele nunca soubera, que havia se afogado depois de salvar uma criança no Tibagi; o mendigo Raimundo, que dividia suas esmolas com os outros mendigos; os amigos Theodoro e Tomé, que haviam trabalhado na marcenaria quando ele, o velho, era jovem.

Há muito tempo não ia à missa, por motivo de força maior. Mas essas missas de agora estavam muito barulhentas, e a fé do homem era tão velha e silenciosa como ele. Virou-se na cama e, mais uma vez, surpreendeu-se porque a mulher não estava lá. Em 12 anos de viuvez, ainda não se acostumara à ausência de Rosa.

O Sol nascia com a lentidão das manhãs de domingo. Até mesmo os pássaros silenciavam. O galo desapareceu há muitos anos, antes mesmo da partida de Rosa. Mas o velho só percebera que os galos não cantavam mais depois que Rosa atravessou o rio.

Ficou deitado na cama, pensando em Rosa, em como era diferente o gosto do café que ela passava antes de ele ir para a marcenaria.

De repente, alguém abriu a porta e o quarto se iluminou. Quem era? Certamente não eram os filhos; moravam todos longe e nunca o visitavam. Era um homem de batina.

— Padre Ranulfo, o senhor por aqui? Quero me confessar.

— Você não tem pecado nenhum para confessar, meu velho. Venha comigo. Já passou muito tempo; você é o último.

E lá fora já era dia, um dia brilhante como o velho nunca vira. O Padre Ranulfo atravessou com ele as águas do Tibagi; do outro lado do rio, todos os santos de Deus o esperavam. E Rosa sorria.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor do livro de crônicas Nossa Senhora dos Ateus.

 


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