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O fim do caipira — Reflexões sobre uma sociedade sem alma

Lucas de Oliveira Fófano · 19 de Janeiro de 2024 às 10:59 ·

O mundo moderno é um hospício a céu aberto em que homem passou a adorar animais, matar seus filhos e substituir o caipirês por uma linguagem politicamente correta para não ofender o gado

Não é surpresa para ninguém que o mundo moderno se tornou um hospício a céu aberto, um lugar onde se presta culto aos ovos de tartarugas e onde, pela primeira vez na história, existem cemitérios habitados por corpos de pessoas não-nascidas.

Nessa mistura entre distopias e profecias em que vivemos surgem dois movimentos curiosos: o movimento de ascensão animal, que tenta a todo custo dignificar a bicharada como se fosse tal como o homem (nesse movimento se enquadram desde as mães de pet até a peãozada soft do new ag(e)ro — aquele que agora busca maneiras de “humanizar” o trato com o gado, usando até mesmo da supressão do vocabulário campeiro para que o animal não se sinta ofendido com o caipirês que construiu o Brasil e possa conviver com a linguagem politicamente correta que tanto amamos e que colabora, ainda que sem intenção, com uma agenda que, em pouco tempo, nos colocará para comer besouro, barata e grilo em pó) e o movimento de rebaixamento do homem, que desconsiderando a parte mais extraordinária do ser humano, o coloca no mesmo patamar das bactérias e dos cefalópodes — ao mesmo tempo em que acusa de fascista qualquer pessoa que ouse constatar que entre um ser capaz de criar um smartphone e uma lula há uma enorme diferença, ainda que seja moral.

Em primeiro lugar, o movimento de achatamento da hierarquia dos seres não é novo (todas as novas teorias são antigas heresias) e possui raízes no evolucionismo darwinista. Em resumo, o ser humano não é nada mais que um produto da evolução e, como tal, não se distingue em dignidade da mais simples bactéria flagelada. Portanto, dado que a espécie humana é derivada de ancestrais sub-humanos — como de fato aprendemos nas escolas, nos filmes e em todas as teorias vigentes ainda que o sacerdote-cientista possa negar quando contestado —, segue-se que também a sua mentalidade evoluiu de um rudimento sub-humano: o racional do irracional, o autoconsciente do inconsciente. E, sendo este o caso, acertaria o Dr. Freud em supor que uma psique bestial ainda existe em nós, escondida por baixo de uma mentalidade consciente como vestígio vivo de um estágio anterior e, numa paródia demoníaca, também o psicologismo dividiu o homem em três instâncias: o id freudiano: um substrato psíquico julgado como “o âmago do nosso ser”; o ego, a parte consciente do maquinário; e o superego, a estrutura repressiva composta por regulamentações e tabus (como conceitos de moralidade, bondade, etc.).

Partindo desta perspectiva, o sofrimento humano se dá por uma tensão que nasce do confronto do instinto libidinoso com a estrutura repressiva do superego (quem nunca ouviu que repressão gera compulsão?), sendo parte do processo de cura a expressão, aceitação e normalização destes mesmos instintos reprimidos — também uma cópia demoníaca dos conceitos de autodisciplina dos vícios e expressão das virtudes cristãos —, o que resulta numa única premissa básica: a negação da existência da culpa pessoal.

Mas nada disso é uma novidade. Desde Adão, buscamos justificar nossas culpas e escapar da responsabilidade de nossos maus atos: a pobreza, o meio ambiente, os sistemas econômicos e agora o inconsciente — justamente aquela parte que não pode ser responsabilizada por nossas ações.

Para evitar qualquer mal-entendido, fique registrado que isto não é um ataque a todo e qualquer tipo de terapia que busca tratar os distúrbios mentais, tendo em vista que a ciência médica tem uma vasta área na qual opera legitimamente no tratamento de tais casos. Mas, uma vez que o caminho para o tratamento deixa de ver seu paciente na integridade de seu ser, o método se perde e as conseqüências podem ser terríveis. Por exemplo, umas das descrições psicológicas favoritas da modernidade é dizer que ela possui um complexo de ansiedade e ela está realmente correta, mas a ansiedade faz parte da natureza humana. Um dos mais antigos livros da Bíblia, o Livro de Jó, trata justamente desse assunto e o Sermão da Montanha é um aviso contra o tipo errado de ansiedade.

Como não sofrer de ansiedade quando sabemos que somos um ser decaído, composto de corpo e alma? Como não sofrer de ansiedade quando sabemos que estamos a meio caminho entre o animal e o anjo, vivendo em um mundo finito enquanto nosso coração clama pelo infinito? Como não sofrer de ansiedade quando vivemos no tempo e aspiramos o eterno? Estamos em constante tensão entre o que somos e o que deveríamos ser. Essa é a tensão máxima de nossas vidas, tensão que foi substituída, num jogo confuso de afirmações científicas, por uma luta entre a expressão de uma libido animal e as garras de uma repressão social muitas vezes encarada como a figura da Igreja Católica.

Mas, se o ser humano é apenas mais um animal, por que ele sofre por motivos que os animais não sofrem? Cães copulam com suas mães, leões comem seus filhotes, aranhas devoram seus parceiros e nem um só deles é capaz de sentir remorso ou arrependimento por suas ações. O quê, então, existe no homem que o faça diferente? Apenas a pressão social? Mas não seria a pressão social um indicativo de que o homem, com o correr das eras, acumulou experiência suficiente em sua cultura para punir certas condutas e louvar outras justamente porque ele sabe, dentro de si mesmo, que certas ações são louváveis e outras reprováveis? Não seria isso um reflexo de certas leis que são anteriores às leis humanas e estão inscritas em nossos corações? A única resposta possível para a existência da ansiedade, do desespero e da depressão é que existe no homem aquilo que a modernidade finge não existir: uma alma capaz de auto-reflexão.

Uma vez que transgredimos uma ordem moral existente, o único remédio possível é a boa e velha confissão dos pecados, um sistema de auto-acusação em que o próprio réu confessa suas falhas e recebe o perdão dado por um representante dessa ordem moral, o sacerdote. Mas o problema se transmuta e, numa sociedade onde o homem passou a adorar animais e matar seus filhos, a solução toma as vias inversas e já que a psicanálise não pode reatar o homem com a moral que ele transgrediu ela trata de administrar a cura de seu paciente atropelado negando a existência de caminhões.

E ainda assim, mesmo negando a existência de uma lei moral, mesmo transferindo nossas culpas, mesmo criando uma linguagem fofa para lidar com gado e humanizar seu tratamento, mesmo libertando os instintos mais baixos do homem, mesmo normalizando condutas que precederam a queda de todos os impérios, ainda permanecemos como a geração mais fragilizada e dependente de remédios da história do mundo, e só podemos chegar a uma conclusão óbvia: nos esquecemos de quem somos, e em meio a uma culpa angustiante que não encontra uma vazão nós acabamos nos deitando com os porcos.

— Lucas Fófano é professor e editor literário.

 


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