LEITURA DE DOMINGO

O DIA DO JUÍZO

Especial para o BSM · 26 de Janeiro de 2020 às 16:15 ·
Em conto inédito, Diogo Fontana narra os momentos decisivos no fim de carreira de um juiz da Suprema Corte brasileira

Estavam presentes os onze ministros naquela quinta-feira sonolenta. Deliberavam um caso menor, uma arenga familiar de terras, inventários e heranças, cousa antiga com mais de quarenta anos. Rotina, enfim, na vida dos guardiões do Estado Democrático de Direito.

Durante aquela sessão, como exige o salutar costume, os magistrados observaram o mais estrito respeito pelos títulos altissonantes, disso e daquilo, e empregaram o seu dialeto perfumado, aquele palavreado de quem fará milagres.

Depois de quarenta minutos, porém, algo de novo pareceu acontecer, uma insinuação, um detalhe, uma disputa, que elevou o tom de voz, e despertou do torpor um segurança, a taquígrafa e o cameraman da TV Justiça. Dois doutores debatiam como fariseus sobre pontos da Lei de 88, ostentando a singular capacidade mental dos nossos homens públicos. O primeiro atacou, atirando Canotilho no colo do outro, que rebateu, com Kant, Habermas e Adorno. Interpretavam a Carta Magna com extraordinária criatividade.

O Ministro Marcondes assistia a tudo com enfado, indiferente. Conhecia os colegas; sabia que a briga era antiga. Não valia a pena se intrometer. Os répteis que se devorassem. Em tardes mesquinhas como aquela, mesmo para um homem com a história dele, o trabalho era penoso. Eram os ossos do ofício. Ninguém pode se iludir acreditando que os mais elevados postos, os pináculos da República, oferecem ao seu ocupante apenas espumante e lagosta, um banquete contínuo de privilégios e prazeres. Há labuta, há suor. Acima de tudo, há muito bocejo e aborrecimento. Há dias como este, banais, sem brilho e sem holofotes; dias em que o tempo não passa, e a mente vaga, displicente, pelo passado e pelo futuro; dias em que o Ministro Marcondes sente preguiça já no início do expediente, quando principia o espetáculo, sempre idêntico, com todos os juízes de pé, cerimoniosos, e o presidente enuncia a fórmula de praxe: “Declaro aberta a sessão extraordinária e blá, blá, blá...”, então todos se assentam, prontos pra fazer justiça, solenes como bustos de mármore, e a chatice começa.  Não espanta, portanto, que o magistrado estivesse impaciente, tremendo a perna, espiando o relógio da parede, não vendo a hora de ir embora. Quando ele poderia imaginar que a coroação de um tão belo cursus honorum traria consigo tais sentimentos desagradáveis e menores?

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