DESEMPENHO PÍFIO
O colosso da ciência da saúde pública brasileira
Em artigo para o BSM, o professor e pesquisador Marcelo Hermes-Lima analisa o impacto da profunda crise científica do Brasil numa das áreas mais comentadas pela mídia nos últimos anos
Marcelo Hermes-Lima
Especial para o BSM
A saúde pública foi uma das áreas da ciência médica que mais comentadas na imprensa entre os anos de 2020 e 2021, tenho em vista a pandemia de covid-19. Essa é uma área científica na qual o Brasil tem se destacado mundialmente em termos de quantidade de artigos científicos. Em 2019, o Brasil publicou 2,6 mil artigos indexados na base de dados Scopus, fazendo do nosso país o 7º lugar do mundo em produção científica. Em 2020, passamos para o 6ª lugar mundial, posição essa que foi mantida em 2021 (publicamos 3,7 mil artigos nesse ano). Podemos então dizer que o Brasil seria uma potência mundial em saúde pública? Seria um colosso?
Apesar do Brasil ser uma potência em QUANTIDADE de estudos em saúde pública, não podemos dizer o mesmo sobre o IMPACTO dessas pesquisas. O impacto se determina em citações por publicação (CPP), que é um indicador reconhecido há quase duas décadas pela comunidade internacional de cientometria.
Vamos primeiro olhar os anos de 2017 a 2019. Entre os países que publicaram pelo menos 400 trabalhos em saúde pública, o Brasil ficou nas seguintes posições de impacto (ranking CPP).
2017: 26º lugar entre 31 países.
2018: 25º lugar entre 33 países.
2019: 34º lugar entre 40 países.
Se dermos um score 10 ao país que é 1º colocado, e zero ao último colocado, vejamos os scores do Brasil. 2017: 1,61. 2018: 2,42. 2019: 1,50 (média de 1,84 para os três anos). São valores baixos de Rank score. Para se ter uma comparação, a Arábia Saudita ficou em 10º lugar em 2019 (ver ilustração), ou seja, com um score de 7,75. Holanda ficou em 5º lugar, com score de 8,75.
No ano de 2019, o CPP do Brasil foi 48,1% do 1º colocado no ranking CPP em saúde pública (Hong Kong). Os valores em 2017 e 2018 para CPP em relação ao 1º lugar foram 49,1% e 51,6%, respectivamente. Isso deu uma média de 49,6% para 2017, 2018 e 2019. Ou seja, tínhamos apenas metade do impacto das pesquisas dos países “medalhas de ouro” do mundo em saúde pública – um valor baixo.
Vejamos o que aconteceu na época da pandemia. Em 2020, ficamos no 44º lugar no ranking CPP entre 47 países em saúde pública. Isso deu um score de 0,64. O CPP do Brasil foi apenas 22,5% do 1º lugar, Singapura. Em 2021, ficamos em 48º lugar entre 53 países – score de 0,94 no ranking (lembrando que a escala é de 0 a 10). O impacto do Brasil em 2021 foi 37,3% do 1º colocado mundial.
Ilustração – Ranking de impacto em saúde pública de 2019, com 40 países (são mostrados os 10 primeiros lugares, e depois aqueles das posições 34 a 40)
A média de impacto de 2020 e 2021 em saúde pública foi aproximadamente 30% do 1º colocado mundial – um valor bem menor que nos anos anteriores (2017-2019). O score de 2020-2021 também foi menor que 2017-2019: 0,79 versus 1,84 (escala de 0 a 10).
Muitos dizem que os problemas de impacto da ciência brasileira são por causa de nossa língua, o português, que poucos sabem no mundo (cerca de 3% da humanidade). Assim, vamos nos comparar com Portugal em saúde pública!
Os portugueses ficaram em 19º lugar em 2020 (entre 47 países) e 12º em 2021 (entre 53 países) no ranking CPP. Ou seja, scores de 6,0 e 7,7, respectivamente. A produção quantitativa de Portugal é modesta (produziram apenas 714 artigos de saúde pública em 2020), afinal é uma pequena nação. Mas o impacto médio de sua pesquisa é bem melhor que o nosso. Além disso, estão melhorando bastante em impacto nos últimos anos (veja gráfico).
Outra forma de analisar o impacto da saúde pública em termos globais é ver quão estamos próximos ou distantes da média mundial de impacto (chamado de Field-Weighted Citation Impact, FWCI, na qual a média planetária é 1,0). Tivemos um impacto-FWCI médio de 0,81 no período 2014 a 2021. Pode parecer um valor bom, pois é apenas 19% abaixo da média mundial. Portugal teve FWCI = 1,13 para o período 2014-2021, ficando 13% acima da média global. Olhando por outro ângulo, os portugueses se mostraram 40% acima dos brasileiros em saúde pública no indicador FWCI. E os países que são “medalhas de ouro”? Vejamos Singapura e Suíça. Ambos tiveram FWCI = 1,74 no período. Ou seja, estão 115% acima do Brasil na média de 2014 a 2021 – mais que o dobro do Brasil.
Em termos que quantidade de artigos, a Suíça ficou em 19º lugar do mundo em saúde pública em 2020 (1403 artigos). Portugal e Singapura ficaram nas posições 30 e 41, respectivamente. Brasil foi o 6º lugar do planeta com 3,2 mil publicações – um “sucesso” na métrica da quantidade. Mas quantidade é sinônimo de qualidade?
O que verificamos é que o Brasil produz em vasta quantidade em saúde pública, mas com impacto muito reduzido em termos globais. Ficamos, em média, entre os 10% dos países menos relevantes do mundo em 2020 e 2021; serve de consolação saber que a Rússia foi o último ou penúltimo lugar nesse período.
Nesse sentido, como é possível que cientistas com tão pouco impacto internacional (impacto esse que até PIOROU na pandemia, em comparação com 2017-2019) tenham autoridade moral de ditar regras sobre como usar a ciência em termos de gestão sanitária do Brasil? Não seria muita arrogância e petulância? Deixo a resposta para os leitores.
(Agradeço Fabiano Borges (Capes) por fornecer os dados de FWCI.)
– Marcelo Hermes-Lima é professor de Bioquímica, fundador do movimento Docentes Pela Liberdade (DPL) e um dos pesquisadores brasileiros com maior número de citações internacionais em revistas científicas de sua área.
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