DIÁRIO DE UM CRONISTA

O cadáver de Marielle e o Grande Terror no Brasil

Paulo Briguet · 24 de Julho de 2023 às 15:03 ·

O misterioso assassinato de um líder comunista em 1934 serve para explicar uma situação que tende a se repetir no Brasil. Afinal, o socialismo sempre usa um cadáver para acabar com a dissidência
 

Em 1º de dezembro de 1934, o líder soviético Sergei Kirov foi morto com um tiro na nuca no Instituto Smolny, em Leningrado. É um fato simbólico e curioso que o assassinato tenha ocorrido no mesmo local (uma antiga escola para moças nobres) que fora usado como quartel-general pelos comunistas durante o golpe de Estado em 1917. Essas coisas, definitivamente, não ocorrem por acaso.

Kirov era apontado como o mais provável sucessor de Josef Stálin, de quem era amigo íntimo. No entanto, poucos dias antes, no 17º Congresso do Partido Comunista, Stálin e Kirov haviam discutido asperamente sobre a fome entre os camponeses. E o ditador jamais esquecia uma divergência.

O assassino confesso de Kirov, Leonid Nikolaev, foi preso imediatamente. Mas morte de Kirov tornou-se o estopim para um dos mais sangrentos episódios já registrados na história da humanidade: o Grande Terror. Para se ter uma ideia do que aconteceu no período 1935-38, basta dizer que praticamente nenhuma família russa ficou imune às perseguições, prisões, torturas e fuzilamentos promovidos pelo regime. Todos os cidadãos soviéticos, comunistas ou não, eram considerados suspeitos. Stálin não poupou nem mesmo familiares próximos e velhos companheiros de militância. Para quem quiser conhecer melhor essa história, indico dois livros, um relato ficcional e um relato histórico: o romance “O Caso do Camarada Tulaev”, do escritor belga (e comunista) Victor Serge, e a aterrorizante obra-prima “Sussurros”, do historiador inglês Orlando Figes.

O que aconteceu naquele período assemelha-se a outros episódios da história, como o Terror da Revolução Francesa (1793-94), o Grande Salto para Frente na China (1958-60) e a ascensão do Khmer Vermelho no Camboja (1975). A técnica do amálgama (ou enquadramento), desenvolvida pelos comunistas russos, foi largamente utilizada para condenar milhões de pessoas à morte. O amálgama consiste em atacar um indivíduo ou um grupo social com uma quantidade enorme de acusações mentirosas, tornando impossível a defesa. Qualquer fato relacionado à pessoa-alvo (uma amizade, uma relação de trabalho, uma conversa pessoal ou uma simples declaração de voto) vira motivo para enquadrá-la como inimigo do povo.

Quem mais se beneficia desse estado de coisas é o verdadeiro criminoso: afinal, onde todos são culpados, ninguém é culpado. Onde tudo vira crime, nada é crime.

Não é por acaso que o socialismo sempre necessita de um cadáver para iniciar o morticínio de milhões. Na Revolução Russa, o cadáver foi o do czar. No Grande Terror, o de Kirov. No Brasil, tudo indica que o atual regime usará o cadáver de Marielle Franco para perseguir e extirpar a oposição brasileira. O objetivo é calar definitivamente 58 milhões de pessoas.

Assim que tomou conhecimento da morte de Kirov, Stálin disse a Mikoian, antes de qualquer investigação, que o crime era o início de uma onda de “terror contra o Partido” e acusou seus supostos adversários pelo crime. Em seguida, assinou uma lei de emergência para que os acusados de terrorismo fossem processados no prazo de dias e a execução fosse imediata, sem direito a apelação. Essa lei abriu caminho para que, nos quatro anos seguintes, 2 milhões de pessoas fossem sentenciadas à morte ou ao campo de concentração na União Soviética.

No socialismo, o genocídio sempre começa com a desumanização de um grupo social (“são animais selvagens, não são seres humanos, merecem ser extirpados”) e a sua vinculação a um crime particular. Vários historiadores veem semelhanças entre a morte de Kirov em 1934 e o incêndio do Reichstag em 1933. Da mesma maneira que os nacional-socialistas alemães copiaram o modelo de campos de concentração criado pelos comunistas soviéticos, Stálin inspirou-se no episódio do Reichstag para iniciar o Grande Terror na segunda metade dos anos 30.

No Brasil, tivemos o nosso Reichstag, e você sabe quando. Mas, como não morreu ninguém, precisaram exumar Marielle. O palco para o Grande Terror está montado.

Paulo Briguet é cronista e editor-chefe do BSM. Autor dos livros O Mínimo sobre Distopias e Nossa Senhora dos Ateus.

 


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