DIÁRIO DE UM CRONISTA

O Brasil e a tempestade da compaixão

Paulo Briguet · 5 de Maio de 2024 às 11:00 ·

A tragédia no Rio Grande do Sul é uma valiosa oportunidade para mostrarmos que não somos um país de psicopatas

“O Senhor perguntou a Caim: ‘Onde está Abel, teu irmão?’ Ele respondeu: ‘Não sei. Acaso sou o guarda do meu irmão?’”
(Gênesis 4, 9)


A mais importante característica do psicopata é a completa ausência de compaixão pelo próximo. Em geral, o psicopata compreende perfeitamente o sofrimento alheio, mas o utiliza para atingir seus próprios objetivos. Caim, o primeiro assassino da história, é também o primeiro psicopata. Note-se que Caim não se arrepende do crime que cometeu; não por acaso, ele funda a primeira cidade, ou seja, a primeira sociedade política. Isso quer dizer essencialmente que a política tem sua origem em um ato de traição, sendo uma consequência do pecado original.

Nas situações em que o sofrimento das pessoas é elevado a graus extremos, como na tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul, as mentes psicopáticas costumam se revelar. De certo modo, podemos dizer que estamos todos condenados à política, nem que seja para nos defendermos dela. Mas, nas grandes tragédias, o psicopata vê na política uma oportunidade para se fortalecer, para avançar suas agendinhas de merda.

Enquanto uma velha senhora, vestida com um estranhíssimo figurino das trevas, dançava lascivamente para milhares de pessoas na Praia de Copacabana, os nossos irmãos gaúchos padeciam na lama e no caos. De certo modo, esses contrastes são inevitáveis; vivemos em um mundo ontologicamente decaído, onde o pranto e o riso coexistem como irmãos rivais. Mas o que eu não entendo é a indiferença. O que eu não entendo é a falta de compaixão. Desculpem, mas eu não consigo entender a dança de Sodoma e Gomorra durante o flagelo.

Também não entendo aqueles que espezinham o irmão que está caído, pedindo socorro. Não entendo aqueles que culpam o adversário político pela tragédia. Não entendo os que zombam, os que rosnam, os que se locupletam diante da dor. Não entendo e nunca entenderei.

Agora, meus queridos sete leitores, eu só consigo pensar naquele hospital inundado. Só consigo pensar na boneca que boiava na correnteza e não era uma boneca, era um bebê. Só consigo pensar nos gritos dos ilhados e na angústia dos que esperam uma mensagem dos desaparecidos. Só consigo pensar naquele heroico cordão humano em Canoas. Só consigo pensar nas casas destruídas, nas plantações devastadas, no trabalho de vidas inteiras sendo arrastado pelas águas. Só consigo pensar na imagem de Nossa Senhora, medianeira de todas as graças, intacta em meio à gruta destruída de Bento Gonçalves.

Sim, eu sei que sou um sujeito estranho por pensar nisso tudo, enquanto pela janela da minha mesa de trabalho vejo o lindo céu azul de Londrina neste Dia do Senhor. Talvez eu seja mesmo um cara esquisito por achar que estamos doentes de política a ponto de não nos comovermos o suficiente com tanta dor. Perdoem-me a esquisitice, eu peço. Mas, se puderem, rezem por nossos irmãos do Sul.

Na grande literatura, tempestades simbolizam uma grande alteração na ordem da realidade. Depois da tempestade, o Rei Lear entende o que está acontecendo tanto é que o Bobo, única personagem lúcida até então, some da peça para não mais voltar. E não é por acaso que a última peça de Shakespeare se chama A Tempestade. É um poema do perdão, da compaixão, da redenção.

Não sejamos um país de psicopatas. Que a tragédia do Sul nos faça reconhecer, como o Rei Lear, a imensa chuva de misericórdia que todos os dias Deus faz cair sobre nós. E dessa forma entenderemos que sim, nós somos os guardas do nosso irmão.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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