LITERATURA

O artista — Um conto de Renan Rovaris

Especial para o BSM · 2 de Dezembro de 2023 às 18:08 ·

— Ô, rapaz, você aí tocando no meio dos carros, ninguém te ouve!

Por Renan Rovaris

O segundo círculo luminoso apagou-se para dar lugar ao alarmante brilho avermelhado do primeiro. Os carros frearam obedientes diante da ordem silenciosa do semáforo, guiados pelo sentimento cívico de seus condutores. Escapamentos rugiram impacientes, tossindo fumaça no ar escaldante da avenida, afogada debaixo do sol do meio-dia. O barulho dos motores pairava por sobre o asfalto como uma névoa densa, cobrindo tudo de mouquidão.

Por entre os carros, um homem, se assim o poderíamos chamar, que suas roupas velhas e sua falta de banho o punham abaixo da grandeza do título, segurava um objeto cilíndrico, comprido e amarelado. Estendendo-se imponente e ereto como coluna grega, no ímpeto de sobressair-se ao estrépito da cidade fervilhante, ergueu a voz num grito esgoelado:

— Boa tarde, senhoras e senhores! Me chamo João da Flauta, e apresento-lhes um grande sucesso da nossa música brasileira! “Sem Medo de Ser Feliz”, de Zezé Di Camargo e Luciano!

O homem fez pose de maestro a preparar-se para conduzir sua orquestra, ergueu com dignidade o instrumento de plástico até a boca, apertando os lábios num formato de bico adequado à embocadura, sugou todo o ar enfumaçado que julgou necessário para exercer tão elevada expressão artística, e soprou como a um berrante.

De súbito, a flauta cantou um “fiii-fifififi-fifififi-fifiii-fiii!” medíocre. Curvando-se sobre o peito na esperança de espremer os pulmões e aumentar o volume da canção, que estrondeava inócua diante do ronco nervoso dos automóveis, o homem arroxeava-se feito vinho pelas bochechas, esticadas à beira da explosão.

Por trás de vidros fechados, refrescando-se sob o vento gelado que saía de seus ares condicionados, os cidadãos ignoravam a apresentação com superioridade monárquica. Faziam questão de não vê-lo, para não se constrangerem em dar-lhe um trocado, uma moedinha que fosse. “Se a gente não der dinheiro, eles desistem e somem”, disse um motorista à mulher sentada ao lado. Outros ainda não precisaram desprezar o flautista: simplesmente não o viram mesmo. De olhar baixo, entretidos em seus celulares, ignoravam também as câmeras de vigilância, capazes de penetrar suas janelas, ler suas conversas e multar desenfreadamente quem não desse o exemplo democrático de não usar o telefone ao volante.

O homem terminou sua interpretação com fôlego de quem sofreu afogamento. Estava tonto, a visão turva, quase ao ponto do desmaio. A flauta, já afastada do orifício que lhe era próprio, embora ainda ligada a ele por uma generosa linha de saliva esbranquiçada, descansou finalmente, orgulhosa. Imensas gotas de suor subiam daquela pele porosa e imunda, deixando para trás rastros que se abriam como córregos rosto abaixo.

Fazendo de gazofilácio seu boné encardido, o homem estendia o braço esperançoso a janelas cerradas, aguardando qualquer mão generosa, que veio oferecendo uma nota de cinco reais.

— Deus lhe pague, amigo! — agradeceu ele, abaixando a cabeça ao doador.

— Ô, rapaz, você aí tocando no meio dos carros, ninguém te ouve!

— Como é?

— Você tocando aí no meio do barulho, não tem como te ouvir! — repetiu aos gritos o motorista.

— Ouve! Um e outro acaba ouvindo. O senhor não ouviu? Aí a gente arranja uns trocados. Se não ouvirem, também não há problema: eu toco é pela arte.

— E não faz mais nada da vida?

— Eu queria mesmo era ser alguém importante, um doutor… quem sabe dentista! Mas dentes são assunto de uma transcendência inalcançável para mim, quase divina; um tipo de tecnologia celeste. Imagine, dez semestres de estudos para aprender a obturar os molares inferiores! Um amigo meu de infância se formou agora há pouco, e não foi para ser simplesmente dentista, não: virou cirurgião-dentista! Verdadeiro título de nobreza. É membro do Conselho Regional de Odontologia e pode até receitar antibióticos.

— Deve ser profissão que paga bem…

— Justiça da meritocracia, amigo! Ajudar um pobre a livrar-se de um dente cariado é uma abnegação que merece reconhecimento beatífico, quanto mais financeiro.

— Você fala bem. Por que não estudou, rapaz?

— Eu não ouvi o que dizia meu tio — este, por sua vez, advogado — e passei os dias de faculdade lendo romances do Lima Barreto, sonhando ser escritor. Quase fui amanuense de gente entendida. Acabei por virar artista de rua.

Renan Rovaris é escritor e designer.

 


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