REVISÃO HISTÓRICA

Nos 90 anos de Londrina, Universidade pode mudar o nome da Casa do Pioneiro

Paulo Briguet · 9 de Julho de 2024 às 14:28 ·

Órgão universitário propõe mudança do nome de um importante patrimônio histórico de Londrina. Residência construída em 1946 pelos pioneiros Augusto e Maria Aguiar Gomes passaria a se chamar “Casa da Memória”

A Universidade Estadual de Londrina (UEL) pode estar prestes a mudar o nome de um dos mais emblemáticos patrimônios históricos do campus e da cidade, a Casa do Pioneiro. Trata-se de uma edificação de madeira construída em 1946, pela família Gomes, e que se localizava originalmente na Rua Goiás, no centro da cidade de Londrina. Ali, por muitos anos, viveu o casal de pioneiros Augusto Gomes e Maria Aguiar Gomes, com seus oito filhos. Em 1997, por iniciativa da administração do reitor Jackson Proença Testa, a casa da família Gomes foi transplantada para o campus universitário e por 20 anos foi utilizada como sede do Inventário e Proteção do Acervo Cultural de Londrina (IPAC/LDA). Em 2017, a Casa do Pioneiro passou a sediar a iniciativa CLCH Cultural e projetos do Laboratório de Estudos de Religiões e do Práxis Itinerante.

Em 29 de abril último, a museóloga Gina Esther Issbener, coordenadora da CLCH Cultural, enviou um documento à professora Laura Taddei Brandini, diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas da UEL, com a proposta de mudar o nome da Casa do Pioneiro. Segundo a museóloga, o nome utilizado durante 27 anos “tem causado estranheza” uma vez que o termo pioneiro, segundo a definição de dicionário, remete “àquele que primeiramente abre ou descobre regiões desconhecidas e nelas tenta estabelecer uma colonização”. Citando uma obra do professor catarinense Carlos Eduardo Bao, autor do livro “O discurso do pioneirismo e a invenção do sul do país: eurocentrismo e decolonialidade”, a coordenadora da CLCH Cultural afirma que o termo pioneiro insere-se em uma “‘categoria social euro-centrada, universalista, que contribui para proporcionar um aspecto de naturalidade à usurpação de territórios e dominação dos povos originários’, não significando que sejam os primeiros humanos a ocuparem o espaço territorial da cidade”. Na solicitação, a museóloga Gina Issbener propõe que se analise a mudança do nome “Casa do Pioneiro” para “Casa da Memória”. A autora do documento assinala ainda que “as modificações sugeridas são de suma importância para o desenvolvimento das atividades culturais no CLCH e em todas as instâncias da universidade e comunidade externa, cumprem com o pressuposto do direito à cidadania cultural, além de coadunar com os preceitos democráticos desta Universidade”.

Os pioneiros Augusto e Maria Gomes, proprietários originais do imóvel que hoje é a Casa do Pioneiro, dificilmente poderiam ser enquadrados na categoria de usurpadores ou dominadores. Nascido em Lençóis Paulista, em 1898, Augusto era um simples agricultor que veio com a esposa para Londrina em 1939, buscando as terras férteis anunciadas pela Companhia de Terras Norte do Paraná. Aqui ele adquiriu um pequeno lote e começou a trabalhar na terra, como fizeram milhares de pessoas, vindas de todas as regiões do Brasil e de 38 países de quatro continentes, no maior e mais bem-sucedido programa de reforma agrária realizado pela iniciativa no planeta. Não mataram ninguém, não expulsaram ninguém, não tomaram a terra de ninguém. Fizeram tudo dentro da lei e da ordem. Criaram uma família, construíram a sua casa e hoje são lembrados carinhosamente e respeitosamente como pioneiros de nossa cidade. Pioneiros que, por sinal, foram homenageados no início dos anos 2000 pela então administração petista de Londrina, com a construção do Memorial dos Pioneiros, na Praça Primeiro de Maio. Sei disso porque fui o autor dos textos que podem ser lidos nos totens ali erguidos.

A proposta de mudar o nome da Casa do Pioneiro está sendo analisada pelos diversos departamentos que compõem o Centro de Letras e Ciências Humanas da UEL. O BSM teve acesso a dois professores que participaram dessas votações, tendo sido os únicos docentes a não votarem favoravelmente à mudança do nome.

O professor Gabriel Giannattasio, do Departamento de História, comenta:

“Em princípio, não vejo problema nenhum em mudar o nome das coisas. Entretanto, toda mudança exige uma justificativa razoável. Nesse caso, entendo que a justificativa para a mudança é totalmente ideológica e insere-se na guerra cultural que estamos vivendo há décadas. Parece que a guerra chegou ao patrimônio histórico de Londrina. Ocorre que em Londrina nós temos uma população que, quando chamada a manifestar-se, sempre mostrou-se profundamente conservadora. Por outro lado, os centros nevrálgicos da memória de Londrina estão sendo geridos por pessoas que têm outra visão da cidade. Na verdade, todo mundo tem direito à memória. O pioneiro tem direito à memória, o imigrante tem direito à memória, o nordestino tem direito à memória. Por que colocar um tipo de memória contra o outro? Por que acusar os pioneiros de ocultarem a memória dos indígenas? Isso, na verdade, é promover uma guerra entre fantasmas. Se você quer homenagear os nordestinos, os negros, os indígenas, não há problema algum. Mas o que eu não vejo sentido é transformar a memória do pioneiro em caso de disputa. Gostem ou não, o pioneiro exerceu um papel fundamental no processo de constituição de nossa cidade!”

A professora Marluce Fagotti, do Departamento de Letras Modernas e Estrangeiras, completa:

“A proposta de mudar o nome da Casa do Pioneiro foi lida durante uma reunião de departamento. Fui a única a votar contra. O grande problema é que estão propondo essa mudança sem que a comunidade participe da decisão. É preciso que esse assunto seja divulgado para a comunidade. Não podemos deixar que os pioneiros sejam cancelados, sejam apagados da história sem que a comunidade tenha conhecimento disso. Na verdade, o termo é esse: estão querendo apagar os pioneiros de Londrina. Às vezes eu acho que alguns setores da universidade vivem numa bolha, alheios ao que as pessoas da comunidade realmente pensam. Dias atrás, em uma reunião do Rotary Club, eu vi dois descendentes de pioneiros falando do amor que sentem por Londrina e de como servem à cidade com muito orgulho. Essas pessoas precisam ser valorizadas. Apagar as palavras pioneiro e pioneirismo é um desrespeito à memória de Londrina. A história não pode ser apagada”.

No próximo dia 10 de dezembro, Londrina comemora 90 anos. Seria esse o momento propício para mudar nome da Casa do Pioneiro?


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