DIÁRIO DE UM CRONISTA

Memórias do Bar da Costela

Paulo Briguet · 1 de Julho de 2024 às 17:37 ·

O último destino dos boêmios de minha cidade nos anos 90

Um amigo meu costuma dizer que a nossa geração, que foi jovem nos anos 80 e 90, é formada por sobreviventes. Sobrevivemos às loucuras, às ilusões, às drogas, à bebida, à política, à ideologia, ao aborto, ao egoísmo. Mas, aqui em Londrina, sobrevivemos principalmente ao Bar da Costela.

O Bar da Costela era o último destino dos boêmios londrinenses. Quando todos os bares se fechavam, quando o último garçom colocava a última cadeira sobre a última mesa, quando até as mais resistentes criaturas notívagas cogitavam a possibilidade de ir para casa dormir, alguém sempre se lembrava de dizer:

— Vamos pro Bar da Costela!

E íamos.

O Bar da Costela, na verdade, era uma portinha. Mas uma portinha com uma qualidade insuperável: não fechava.

Bar da Costela pelos olhos. Parece que estou vendo o velho refrigerador; o balcão com tampa de fórmica sobre o qual colocávamos nossos copos americanos; as prateleiras na parede, onde jaziam garrafas empoeiradas de cachaça, conhaque, traçado, gim, vermute, rum, Fogo Paulista e outros venenos; o banheiro que um não-iniciado teria dificuldade em encontrar em meio às caixas de cerveja empilhadas; as duas ou três mesinhas de metal enferrujado; os azulejos engordurados da parede; as moscas (até elas meio zonzas).

Bar da Costela pelos ouvidos. A conversa — às vezes gritada, às vezes sussurrada — entre os frequentadores; o verso da “Boate Azul” que algum mais bêbado começava a cantar, esquecendo-se do resto da letra; alguém pedindo mais uma cerveja; e, claro, o chiado da panela de pressão.

Acima de tudo, Bar da Costela pelo olfato. É indescritível o cheiro da costela sendo cozida. Não era, admito, um odor dos mais agradáveis, mas estava indissoluvelmente associado ao lugar. Impregnava tudo: as garrafas, os copos, as cadeiras, nós mesmos. E aqui confesso a vocês sete: eu NUNCA comi uma costela no Bar da Costela. Mas reconheceria aquele cheiro em qualquer lugar do universo.

Meu pai dizia que em lugares como o Bar da Costela você sempre está seguro: se você teve coragem de ir até lá, ninguém vai incomodá-lo. Certa madrugada, puxei conversa com o rapaz que estava ao meu lado no balcão, silenciosamente tomando seu conhaque. Ele havia acabado de deixar a Penitenciária Estadual de Londrina, depois de passar alguns anos como hóspede daquela casa. Informou-me o artigo do Código Penal que o havia levado até lá. Não me lembro qual. Só sei que logo em seguida começou a chover.

Peguei então o violão e cantei uma velha canção de Raul Seixas:

Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva que volta pra terra traz coisas do ar
Aprendi o segredo, o segredo, o segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar

De repente, o bar inteiro estava cantando o refrão comigo. Inclusive o egresso da PEL. Acho que vi uma lágrima saindo de seu olho; não posso garantir.

Quando finalmente saímos do Bar da Costela, o aguaceiro já havia terminado. Era a manhã de domingo em Londrina — e eu senti o cheiro da chuva.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Esta crônica está no livro Nossa Senhora dos Ateus.

 


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