ALTA CULTURA

Há boa música contemporânea

Especial para o BSM · 5 de Abril de 2020 às 19:06 ·

Autores como Philip Stopford, Marco Frisina, Morten Lauridsen e Amaral Vieira demonstram que a música de qualidade produzida atualmente tem como principal fonte de inspiração a liturgia cristã

Por Felipe Lesage é mestre-de-capela da igreja Saint-Georges em Lyon e criador do site voltado ao ensino da música sacra felipelesage.com/br

Aquilo que se entende vulgarmente por música contemporânea — algo como o resultado sonoro de gatos praticando le parkour numa loja de instrumentos musicais — não contempla senão um aspecto parcial do fenômeno que o termo “contemporâneo” abarca. Com efeito, a música de nosso tempo vive e passa bem — não tanto na academia, viveiro da gataria, nem tampouco nas salas de concerto ou no canal Vevo, mas naquilo que é o berço de praticamente toda a música ocidental: a liturgia cristã.

Sim, da Fé nasceu a nossa música. É mesmo a essa constatação que somos conduzidos se desbravamos a Nova História da Música de Otto Maria Carpeaux. Ali paira um segredo, a saber: o rito cristão, em seus gestos e textos, na acústica das igrejas que o acolhem e, last but not least, em sua finalidade mesma serviu à música enquanto esta pretendia servir àquele. Assim é que vemos surgirem ao longo da história formas musicais homônimas dos momentos da liturgia a que se prestam: intróito, alleluia, gradual e a forma por excelência, que é a própria Missa, posteriormente parafraseada na sinfonia, fruto maduro da liturgia. Os textos do ordinário (Kyrie, Gloria, Sanctus, Agnus Dei) são como a plataforma comum sobre a qual muitos cânticos novos foram criados, conferindo unidade a manifestações estéticas tão variadas como a Missa Gregoriana IV, datada do século X, e a Missa Pange Lingua de Josquin Desprez, composta cinco séculos mais tarde sob roupagem polifônica.

Os exemplos que ilustram o fato de que a liturgia está para a música ocidental como o berço está para o bebê são abundantes. Coisa menos facilmente identificável nos livros de História da Música é que essa relação simbiótica continua em vigor. E eis aqui alguns compositores que, seguindo uma tradição ininterrupta desde o início da cristandade, encontram no rito cristão o habitat por excelência, a razão mesma de ser de suas criações artísticas.

Comecemos com Mons. MARCO FRISINA, atual diretor musical da diocese de Roma. Na obra desse prolífico padre vemos a tradição da música cristã retornar a uma ingenuidade dos dias de infância. Assim, hinos gregorianos milenares encontram, nas partituras de Frisina, uma roupagem leve, cantável pelos mais variados públicos. As melodias que ele mesmo cria são também de uma simplicidade generosa, sem detrimento da expressividade musical, e dão testemunho da preocupação pedagógica de um compositor que é antes de tudo sacerdote. Inspirado, aliás, por esta iniciativa a um só tempo tradicional e moderna de Frisina (ou moderna porque inscrita na mais profunda tradição), podemos, no Brasil, nos alegrar com o trabalho do maestro Clayton Dias. À frente do Coro da Arquidiocese de Campinas, Clayton conduz um trabalho de valorização da música sacra que já vem se irradiando pelo Brasil e, como o óleo suave que desce desde a barba até a orla do manto,[2] reverbera naturalmente no campo da música profana.


Ó, Hóstia Santa, de Mons. Marco Frisina, interpretado pelo Coro da Arquidiocese de Campinas.

 

 

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