IDEIAS

Fé, ciência e a serpente que devora a própria cauda

Lucas de Oliveira Fófano · 4 de Fevereiro de 2024 às 11:25 ·

Em artigo especial para o BSM, Lucas Fófano discute a religião do mundo moderno: o cientificismo

Por Lucas Fófano

Para quem veio do interior, como a grande parte dos brasileiros, o fato de o movimento das formigas indicar chuva não é lá tão espantoso. Conhecer a melhor época para o plantio com base no movimento da lua é comum e saber que uma mulher que dorme com um padre se transforma numa mula sem cabeça não é nem grande mérito e tampouco algo assombroso, pois o caipira sempre soube que entre o movimento ordenado e harmonioso das formigas e a punição de uma transgressão são fatos tão certos quanto a existência de uma inteligência que os ordena.

De alguma forma o homem sempre buscou um princípio de unidade que pudesse explicar a ordem natural. Desde os pré-socráticos até Stephen Hawking.

Com a evolução natural da linguagem e a chegada do tipo de discurso lógico-analítico entre o século XVI e XVII com Spinoza, Leibniz, Descartes etc., os cientistas passaram a contar com uma nova e poderosa ferramenta de investigação na busca de uma teoria científica que desse conta de toda a realidade natural, uma teoria que pudesse ser um sistema de conceitos capaz de fornecer uma explicação unificada do mundo físico e que fosse expressa por uma linguagem universal: a matemática.

Acontece que uma tal teoria unificada não é capaz de abranger a totalidade da realidade. Ele não é capaz de abranger, por exemplo, o porquê de o prisioneiro 16670 de Auschwitz ter dado sua vida por um pai de família e tomado seu lugar no bunker da fome.

Portanto, se tal teoria não pode abranger tudo, o que poderiam fazer? Ora, se o paciente não cabe na maca, o que fazemos? Trocamos para uma maca maior. E foi justamente o que eles não fizeram: eles amputaram as pernas do paciente, afinal a ciência só pode fornecer respostas se o objeto investigado fizer parte do domínio da técnica científica.

Surgiu assim a ciência moderna, fruto de uma concepção metafísica falsa e baseada em duas premissas erradas: 1°. A existência de um mundo externo feito exclusivamente das chamadas res extensa, ou “coisas extensas”, as quais são desprovidas de quaisquer atributos ou qualidades, como cor, por exemplo. Ou seja, aquilo que é passível de mensuração através de um conjunto determinado de técnicas aquilo que não percebemos: como peso, altura, largura, profundidade etc.; 2°. Tudo o que não se encaixa como res extensa fica relegado às chamadas res cogitans, ou “coisas pensantes”, cujo ato constitutivo não é ter extensão ou quantidade, mas pensamento. Portanto, tudo o que é percebido, mas dificilmente mensurado, como a vermelhidão de uma maçã, por exemplo, passa a ser um objeto de pensamento, algo que não tem existência fora de uma mente particular.

Essa construção, no entanto, é um absurdo ilógico, pois ao mesmo passo em que nega o mundo perceptível usando da compreensão do mundo mensurável, a ciência o faz através de uma percepção, como quando percebemos através da visão esta ou aquela leitura no visor de uma balança.

Dessa forma, não é exagero dizer que a física moderna inicia sua trajetória rasurando o primeiro versículo do texto que nos deu nossa cosmologia: “No princípio o acaso criou a terra...”, dizem eles, “e a terra era desprovida de propósito”.

O mágico e certeiro movimento científico inicia sua jornada na terra castrando metade da realidade. O bifurcacionismo cartesiano retira da natureza o que nós, no Gênesis, tínhamos como céu, e não coloca nada no lugar, usando a alegação de que tudo o que é percebido é individual e, portanto, relativo. Esse movimento de exclusão de Deus e das realidades metassensíveis são encarnados nas palavras de Peter Atkins num famoso debate com William Lane Craig em 1998. Diz ele:

“Tudo aqui que a religião afirma que Deus pode fazer pode ser explicado pela ciência. Então, não há necessidade de Deus porque a ciência pode explicar tudo”.

Cientificismo, então, é a crença de que estamos perdidos, à deriva, como peregrinos num torrão flutuante, e que a ciência será a barca que salvará todos do naufrágio, um naufrágio sem causa, onde os náufragos e a água surgiram por acaso num determinado ponto de um imenso mar de possibilidades. Essa mentalidade, da razão como salvadora do homem, já foi descrita no Gênesis quando, através da técnica, o homem tentou alcançar a morada de Deus. Mas a pretensão agora é maior. Hawking disse em uma de suas obras que com a teoria cosmológica completa seria possível, como triunfo último da razão humana, conhecer a mente de Deus. Portanto, cientificismo é a crença de que a ciência pode e deve oferecer uma nova cosmologia à humanidade e esse novo padrão será capaz de nos assegurar todas as respostas que podemos ansiar já que, desprezando os “porquês”, eles podem nos saciar com os “comos” e o que fugir dessa garantia será deixado a cargo da observação futura (qualquer semelhança entre este discurso e o discurso revolucionário não é mera coincidência).

A questão que sobra é: como algo erigido dessa maneira pode suplantar a religião? Tomando para si a responsabilidade de iluminar questões extremamente valorosas para o ser humano, como “De onde viemos?”, “Quem é o autor da vida?”, “Há um Deus?”. A luta do cientificismo, portanto, não é contra a fé, mas contra a religião, pois o cientificismo em si é uma religião, com dogmas, ritos e uma comunidade de iniciados, baseada na ciência e assegurada por seus métodos tecnológicos. O cientificismo exige do homem uma fé, como acontece quando um ‘modelo’ é falseado e sua premissa derrubada. Por exemplo: para que a teoria evolucionista se sustente é preciso que exista a prova para o “elo perdido” evidências que provem que o homem passou realmente por uma evolução sendo documentada pelo registro fóssil. Na falta de tal prova, o arauto da teoria é obrigado a criar uma hipótese que preencha tal lacuna. O próprio Darwin reconhece essa fragilidade quando questiona essa mesma lacuna: “Por que, então, não está cada formação da era geológica e cada estrato repleto desses elos intermediários?”. Sua resposta é a seguinte: “A explicação, acredito, jaz na extrema imperfeição do registro geológico”. Para suprimir uma falha no modelo, cria-se então uma nova hipótese que sustenta a hipótese anterior, como Ouroboros (a serpente que devora a própria cauda): a fragilidade do modelo é creditada com um ato de fé.

A questão agora deve ainda ser reforçada: como algo tão frágil substituiu a religião no mundo moderno? Para entender isso é necessário entrarmos na área da filosofia, de maneira rápida, e usar a demonstração da Teoria dos quatro discursos do professor Olavo.

O discurso, de forma geral, é dividido em quatro níveis de credibilidade: 1°. o discurso poético, que lida com o possível. Ele se dirige à imaginação e para o que ela presume; 2°. o discurso retórico, que trata do verossímil. Ele trata daquilo que é mais convincente dentro de um quadro de crenças; 3°. o discurso dialético, que trata da probabilidade de algo ser verdadeiro. Um tipo de teste das crenças postas à prova; 4°. o discurso lógico-analítico, que é a demonstração da veracidade das conclusões.

Essa não só é a ordem da qual o professor propõe que se faça a investigação filosófica baseada na própria interpretação das obras de Aristóteles, como é a forma através da qual o pensamento funciona. Primeiro captamos os dados através dos sentidos; formamos esquemas de imagens através da memória e da imaginação; construímos conceitos; construímos juízos e raciocínios e formulamos o pensamento com base na validação lógico-analítica.

Porém o cientificismo se apossa dessa estrutura na medida em que forma todo o pano de fundo do imaginário moderno. Por exemplo, aprendemos no interior que quando deixávamos o leite recém ordenhado fora da geladeira, a figura do Saci Pererê apareceria e num ato de travessura azedaria o leite. Mas nós fomos para a escola e essa geração aprendeu não somente o processo pelo qual o leite azedava, mas que a figura do Saci que antes representava o prejuízo que um descuido poderia causar não passava de uma superstição sem fundamento científico e que, talvez, todas aquelas histórias envolvendo serpentes, maçãs, e a morte de gigantes fizessem parte desse mesmo pacote.

Esse encontro da mitologia interiorana com a ciência provoca dois movimentos:

1°. Transfere o legado da autoridade do grupo, ou da comunidade, para um outro grupo, mais esclarecido, menos preso aos mitos sem fundamento e iluminados pela luz da ciência;

2°. Passa a controlar a estrutura imagética moderna, alterando a cosmologia estabelecida por milênios por uma outra, baseada no mundo da possibilidade científica e com isso é capaz de guiar o discurso corrente (1° discurso). Mas não só isso. Essa transferência de autoridade fica restrita aos ditames da comunidade em questão. Aristóteles, por exemplo, dizia que uma investigação deve começar por considerar o repertório dos sábios sobre o assunto investigado. Essa mudança retorce esse esquema, depositando o ponto inicial de uma investigação não sobre um repertório já considerado, mas sobre tópicos publicados com o uso de certos métodos pertencentes às ciências físicas. Não é necessário, portanto, que se faça nenhuma pergunta sobre a natureza do tópico em si ou do método que ele parecer requerer. Uma vez que está nos periódicos científicos, a história se tornou científica. Essa é a opinião de Mary Midgley, filósofa britânica e famosa por seus debates com Dawkins e Stephen Hawking.

Esse modelo de funcionamento da investigação troca o ponto inicial proposto por Aristóteles e o transfere para o ponto final, que seria território da lógica, ao entregar a validação das teorias não a verdade submetida à análise, mas ao consenso da comunidade científica. A verdade passa a depender da opinião da maioria.

Um aglomerado de discursos sobre a vida futura de um ser humano meio máquina ou sobre a evolução a partir da ancestralidade comum cria portanto um novo conjunto mitológico que substitui a cosmologia sobrenatural que moldou o ocidente. Se um artigo diz, por exemplo, que o futuro pode ser dominado por uma evolução humana baseada nas leis da física e da computação, esse mito se torna o ponto de partida justificável para que a ciência se desenvolva nessa direção. Logo, se publicações científicas mostram que algo é possível, a comparação dessa possibilidade com o modelo vigente tratará de dizer se tal teoria é verossímil (2° discurso) se é ou não realizável. O próximo passo é tratar do provável (3° discurso), da confrontação de hipóteses em busca de erros. Entretanto, essa etapa da busca da verdade é cercada por um redil impenetrável para o cidadão comum e inacessível para o homem inculto por 3 razões: 1°. a impossibilidade de acompanhar a quantidade de publicações científicas que, por dia, chegam a 2 mil páginas; 2°. a incapacidade da maior parte da população de entender a linguagem científica acadêmica e 3°. o viés para poupar a palavra ideologia da entidade conhecida como “comunidade científica” em aceitar ou não certas teorias que possam contradizer o modelo vigente como, por exemplo, o teorema da complexidade irredutível do biólogo molecular Michael Behe, que demonstrou a fragilidade do modelo evolucionista-transformista e foi banido pela comunidade científica como “pseudociência” uma clara heresia científica. Por fim, a última parte, que trataria da validade ou não do discurso (4° discurso), fica presa ao consenso da comunidade e pode servir de justificativa para as maiores atrocidades humanas.

Olhando dessa forma, talvez não seja exagerado mudar a definição: cientificismo não é o depósito da fé na ciência, mas o depósito de nossa própria liberdade nas mãos dos iluminados.

Lucas Fófano é caipira, professor e editor literário.

 


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