Entre embargos, máquinas de lavar e carros usados, o eixo russo-chinês se revela
Ex-repúblicas soviéticas importam produtos manufaturados para furar o bloqueio da União Europeia à Rússia
A União Europeia ameaça impor restrições comerciais aos países que estão atuando como “porta dos fundos” para a Rússia burlar as sanções comerciais impostas pelo bloco. Autoridades europeias que monitoram os fluxos comerciais para Moscou notaram uma absorção significativa no comércio de bens de consumo entre a UE e países na Ásia Central que são tradicionais aliados russos.
Essas novas rotas comerciais foram notadas devido ao aumento em relação ao fluxo comercial dos anos anteriores. Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão, por exemplo, passaram a importar da Europa entre 60% e 80% a mais itens como bens duráveis, máquinas e matéria-prima para a indústria química.
Não há um boom econômico na região que justifique tal aumento, e levando em conta que estes países, todos ex-membros da União Soviética, ainda têm forte dependência política, cultural e econômica da Rússia até hoje, é muito provável que as importações sejam remetidas diretamente para o regime de Putin.
O jornal britânico Telegraph alega que teve acesso a um documento confidencial que mostrava reuniões entre líderes de estados-membros da UE com o objetivo de criar mais sanções, agora para os países suspeitos de ajudarem a Rússia a driblar as barreiras comerciais.
A proposta pode impedir que qualquer país, empresa ou indivíduo, seja impedido de acessar o mercado comum europeu se forem descobertas evidências que comprovem que eles reexportaram mercadorias proibidas para a Rússia.
Muitas das mercadorias que estão sendo enviadas contêm as chamadas tecnologias de “dupla utilização”, que têm aplicações militares e civis, que estão em uma lista de itens proibidos para exportação para a Rússia, entre os quais máquinas de lavar, carros usados e câmeras.
Os semicondutores e outros componentes destes itens são usados para reconstruir tanques, veículos blindados e drones de vigilância da Rússia que foram danificados na Ucrânia. A maioria das remessas que saem da UE segue para a Bielorrússia, através da fronteira terrestre com a Lituânia, antes de ser reexportada para a Ásia Central.
A Polônia fechou a fronteira com a Bielorrússia na tentativa estancar o fluxo de mercadorias, mas a rota entre a Lituânia e Minsk ainda está a todo vapor. Ainda segundo o suposto documento que serviu de fonte o Telegraph, o governo lituano afirmou que 97% do comércio através de sua fronteira com a Bielorrússia não tem origem na Lituânia, mas sim de mercadorias vindas de outros estados-membros.
Sob o plano, além de ampliar as sanções contra os aliados da Rússia, o bloco buscaria primeiro conversas diplomáticas com os países da Ásia Central para “alertá-los sobre as consequências”. O Cazaquistão, um dos parceiros mais próximos de Moscou na região, prometeu monitorar os produtos que passam pelo país.
Turquia, Armênia e Emirados Árabes Unidos também estão sendo vigiados por diplomatas do G7 para uma possível ajuda oferecida à máquina de guerra da Rússia.
O eixo russo-chinês
Propagandistas russos passando-se por analistas conservadores fizeram uma especulação imensa no início da invasão da Ucrânia sobre o imenso poderio bélico russo, que derrubaria o governo de Kiev em semanas. A guerra, que Putin e seus propagandistas insistem em chamar de “operação especial na Ucrânia”, já fez seu primeiro aniversário no mês passado e está longe do fim. O principal problema russo é efetivamente a manutenção caríssima da logística da guerra. Apesar da experiência militar e poder político, o regime de Putin não tem o mais importante: uma economia que suporte a guerra e suas pretensões expansionistas.
A necessidade de importar clandestinamente carros velhos, máquinas de lavar roupa e câmeras, para reaproveitar peças em equipamentos militares, confirma as previsões feitas nesta coluna de que a Rússia não teria condições de passar incólume às sanções internacionais. Obviamente Putin sabia disso desde o início, e contava com seus velhos aliados soviéticos, além de Xi Jinping atuando como seu sugar daddy.
Há indícios claros de que a ditadura chinesa atua como suporte financeiro russo, principalmente no maior flanco aberto após a investida contra a Ucrânia: a manutenção do domínio político nos países da Ásia Central e do Cáucaso, que mesmo depois do fim da URSS ainda estão na principal área de influência geopolítica do Kremlin. Tais países passaram a ser fortemente assediados pela UE e pelos EUA com propostas de financiamentos a juros baixos na área militar e de infraestrutura, porém, para blindar a região da influência ocidental, Pequim imediatamente cobriu a oferta dos americanos e europeus, mantendo a hegemonia, agora oficialmente russo-chinesa, na área.
Não por menos, o Ministério da Defesa da China anunciou publicamente que aumentará a colaboração militar com a Rússia e passará a estreitar cada vez mais estas relações, até chegar ao ponto de poderem, juntos, formar um projeto de segurança de nível global. Na prática, é o eixo russo-chinês tornando público seu projeto de poder global.
Quando o filósofo Olavo de Carvalho, há 12 anos, debateu com Aleksandr Dugin, ele expôs que a teoria do neo-eurasianismo defendida pelo autor russo em sua obra A quarta teoria política, tratava-se realmente de uma nova abordagem do expansionismo russo tal qual no período soviético, e que o mundo multipolar proposto pelo ideólogo de Putin nada mais era que um projeto de poder totalitário global numa aliança com a China.
O fato da Ucrânia ser o alvo de Putin neste momento não é à toa. A Ucrânia, na figura de seu atual presidente, Volodymyr Zelensky, representa a tentativa do leste europeu de se aproxima do Ocidente e se europeizar. A guerra de Putin, desta forma, traveste-se de um enfrentamento heróico contra o globalismo: a solução oriental ortodoxa para os dilemas morais onde o Ocidente liberal falhou miseravelmente.
O único problema desse teatro, dessa guerra fria parte II, é que nem Putin e Xi com seu neocomunismo representam qualquer virtude cristã ou conservadora que possa existir no Leste, nem os liberais americanos e sociais-democratas europeus representam os valores que construíram a glória do Ocidente.
Uma luta entre monstros, mas aparentemente, não há nenhum Behemoth, é só um mar de Leviatãs se digladiando.
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