IGREJA

Em defesa da Dignidade Infinita

Especial para o BSM · 14 de Junho de 2024 às 14:38 ·

Eduardo Cabette faz uma reflexão sobre a recente Declaração Dignitas Infinita: “O ser humano recebe em sua criação por Deus uma dignidade ontológica que não se perde jamais; não é uma dignidade contingente, mas sim constitutiva, essencial ou substancial”

Por Eduardo Cabette

Desde a divulgação da declaração Dignitas Infinita sobre a dignidade humana, sob o crivo do Papa Francisco, tem sido comum encontrar críticas ao título no que se refere à atribuição de uma dignidade infinita ao homem. Dizem que “dignidade infinita só a tem Deus” (sic).

Parece, porém, que tais críticas carecem de uma devida compreensão do texto e da expressão utilizada quando voltada ao contexto humano.

Não há dúvida de que Deus tem dignidade infinita. Ele a tem por Si Mesmo, é da Sua natureza de forma autônoma. Mas, ao homem, por participação e concessão misericordiosa heterônoma, também é conferida por Deus uma dignidade, a qual pode ser interpretada e reconhecida como infinita.

A afirmação acima não tem nada a ver com alguma corrente humanista exacerbada que pretende apresentar um modelo de “Homo Deus” imanentizado. A questão é ligada ao que no próprio texto da Declaração do Vaticano se encontra bem exposto: a dignidade humana deve ser considerada sob uma quádrupla distinção (dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial). Nesse quadro, é preciso compreender que as dignidades moral, social e existencial derivam da dignidade ontológica, ou seja, da dignidade inerente ao homem pelo simples fato de ser homem e criatura de Deus. [1]

O ser humano recebe em sua criação por Deus uma dignidade ontológica que não se perde jamais; não é uma dignidade contingente, mas sim constitutiva, essencial ou substancial. Essa dignidade não depende de quaisquer circunstâncias, características, ações ou omissões de quem quer que seja. Pode-se até mesmo negar essa dignidade ontológica a si e aos outros, mas isso não faz com que ela desapareça ou inexista. É semelhante à existência de Deus e Sua atuação; não depende de nossa crença. A questão não é se acreditamos ou não em Deus, mas se Ele acredita em nós. Assim também nossa dignidade ontológica não depende de nosso reconhecimento, mas é um dom divino indelével.

Diriam alguns: o homem desobedece a Deus, é lançado à Terra com a mancha do pecado original e não cessa de pecar, mesmo após o sacrifício de Jesus Cristo. Nesse passo, o homem perderia sua dignidade.

É verdade. O homem pode jogar por terra sua dignidade moral, social e existencial, mas é preciso compreender que nem mesmo o mais empedernido pecador jamais perderá sua dignidade ontológica, conferida a ele por Deus de uma vez para sempre e, por isso, infinita. Não se pode inverter as hierarquias e fazer com que a dignidade ontológica seja dependente ou derivada das demais dignidades (moral, social e existencial). Não, são as demais dignidades que são derivadas da ontológica e dela dependem. Essa inversão, ou melhor, o aceite acrítico dessa inversão, pode até mesmo fomentar uma visão excludente de seres humanos do campo das obrigações morais devido a circunstâncias variáveis. É exatamente essa inversão e a desconsideração da dignidade ontológica infinita e indelével que permite que surjam teorias que gradualizam o ser humano e fazem de uns menos humanos que outros ou até mesmo inumanos. Pensemos em coisas como o aborto, a eutanásia, o suicídio assistido, manipulações genéticas, desconsideração da humanidade de prisioneiros, preconceitos raciais, de cor, de religião etc. Em todos esses casos, a perda da dignidade moral, social ou existencial faz com que se conclua que o ser humano não tem mais dignidade alguma! E isso é simplesmente absurdo!

A queda do homem do Paraíso não lhe retirou sua dignidade ontológica, mas apenas a moral. É o que acontece com todo pecado. O homem nunca foi abandonado por Deus, nunca foi esquecido. Poderia ser se assim fosse da vontade divina. Deus poderia simplesmente aniquilar o homem, no sentido de reduzi-lo ao nada. Não o fez. Ao contrário, desde a criação mantém a humanidade no ser a cada instante. Deus não somente nos criou, mas nos sustenta na existência e ainda nos confere a vida eterna. E mais: para garantir essa dádiva, entrega Seu Filho Unigênito ao sacrifício salvífico. A soteriologia aponta claramente para uma dignidade infinitamente concedida pelo Criador ao homem, em especial após a união hipostática que faz de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

A Igreja Católica apresenta o Sacramento da Confissão e do perdão dos pecados, sempre à disposição dos homens. Isso somente é possível pela Revelação divina e porque o homem não perde sua dignidade ontológica pelo pecado. Perde somente a dignidade moral, a qual pode recuperar pela reconciliação.

A doutrina do Purgatório segue para a mesma conclusão. Qual a razão para que houvesse preocupação com a purificação das almas se elas tivessem perdido sua dignidade pelos erros?

Alguém poderia neste ponto acenar com o Inferno. Uma alma perdida no Inferno pela eternidade teria então sido subtraída de sua dignidade, inclusive ontológica. Ali somente há sofrimento, não há mais possibilidade de redenção.

Mas esse raciocínio é equivocado. O homem somente pode perder sua alma no Inferno porque é dotado de uma dignidade ontológica infinita que o acompanha mesmo no castigo eterno. É por causa dessa dignidade ontológica, da qual derivam todas as demais, que o homem pode ser responsabilizado por suas escolhas. A responsabilidade humana deriva de sua dignidade ontológica inquebrantável, infinita e segue com o homem na graça eterna e na desgraça eterna. Ninguém ouviu falar de uma samambaia condenada ao fogo eterno, nem de um rinoceronte, um leão ou uma galinha. Isso se dá não somente porque tais seres não tenham alma, mas porque eles não são dotados de alma e de livre-arbítrio, são marcados pelo determinismo e não têm uma dignidade que os possa vir até mesmo a condenar.

A quem muito é dado, muito será exigido. Sem dignidade ontológica humana infinita o Inferno estaria vazio, assim como o Purgatório e até o Paraíso.

 

[1] FERNÁNDEZ, Victor Manuel Card., MATTEO, Mons. Armando, FRANCISCUS, Papa (“ex audientia die25.03.2024). Declaração “Dignitas Infinita” sobre a dignidade humana. Disponível em https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_doc_20240402_dignitas-infinita_po.htmlk , acesso em 05.06.2024.

 


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