DIÁRIO DE UM CRONISTA

Carta ao filho

Paulo Briguet · 3 de Junho de 2024 às 15:08 ·

Envelope encontrado no criado-mudo de um homem idoso

Filho,

Quando você ler estas palavras, eu já não estarei por aqui. Fiz recomendações expressas para que este envelope só lhe fosse entregue depois do meu falecimento.

Estivemos afastados durante muito tempo, mas meu coração de pai sempre esteve perto de você. Todas as noites, eu rezei pela salvação de sua alma, para que Deus finalmente lhe tire as escamas dos olhos, como fez com Paulo na estrada de Damasco, transformando-o de perseguidor em apóstolo.

Paulo era tão temido e odiado quanto você, filho. E Deus lhe abriu os olhos, tirando-o de uma vida de poder e segurança para uma vida de sacrifício e tribulação. Levo para a eternidade a esperança de que você também tenha um caminho de Damasco em sua vida.

No dia em que aquele homem morreu no pátio, eu achei que a dureza do seu coração pudesse ter sido atingida. Pensei que a luz daquela morte pudesse cegar os seus olhos por três dias, para então devolver-lhe a visão. Infelizmente eu estava enganado. Parece que o seu coração endureceu ainda mais. O sangue da vítima acicatou os seus instintos como faz com os tubarões e os touros selvagens — e você redobrou os esforços para aniquilar a vida de outros inocentes.

Eu me lembro do dia em que você nasceu. Para muitos, em nosso país, aquele foi um tempo de trevas, o início dos anos de chumbo. Mas, para mim, foi um dia de festa. Lembro-me especialmente de quando você saiu da maternidade, nos braços de sua mãe, e eu fui dirigindo o nosso Fusca pelas ruas da cidade, onde brilhavam as luzes de Natal. Lembro-me do dia em que você passou no vestibular e cortaram seus cabelos. Anos depois, o primeiro cargo público, e tantas expectativas. Sim, filho. Tenho saudade do bebê, do menino, do jovem que você foi; e do homem que você não foi.

Agora tantos sofrem por sua causa, filho. Você reinaugurou as trevas. Sua mão hoje assina os papéis que determinam a desgraça e a morte de muitos, especialmente aqueles que não têm nenhuma possibilidade de defesa.

Deus ainda não abriu seus olhos, filho, mas tenho certeza de que seus ouvidos funcionam. Por um momento, quando estiver sozinho, preste atenção ao silêncio: dentro dele, por baixo das camadas que recobrem a realidade, existe uma sinfonia em tom menor: são as vozes dos inocentes, dos degredados, dos humilhados, dos angustiados, dos filhos que perderam os pais, das mães que perderam os filhos, dos sedentos e famintos da verdade, da bondade, da justiça. São as vozes das famílias destroçadas, das histórias cortadas, dos que nem sequer viram a luz do Sol. São as vozes do que gemem e choram no Vale de Lágrimas.

Ouça essas vozes, meu filho, eu imploro! Só assim você fugirá ao destino de ser uma delas eternamente.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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