A Caixa de Pandora será aberta: O perigo oculto da ADPF 442
Ação pede legalização do aborto até a 12ª semana de gestão. Mas, se analisarmos a fundamentação do pedido, algo mais assustador salta aos olhos
Por Henrique Cunha de Lima
Uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é um tipo de ação constitucional que serve para questionar perante o Supremo Tribunal Federal leis anteriores à Constituição (caso do Código Penal). Nesta semana, a presidente da Corte, ministra Rosa Weber, colocou em votação a ADPF 442, que pede que o aborto induzido e voluntário seja legalizado até a décima segunda semana de gestação. Em outras palavras, a criminalização do aborto pelo Código Penal violaria preceitos fundamentais da Constituição brasileira; porém, se analisarmos a fundamentação do pedido e suas implicações, algo mais assustador nos salta aos olhos. Em síntese, qual é a tese que o autor da ação, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), quer que STF reconheça?
O partido alega que a proibição do aborto viola os seguintes princípios: dignidade da pessoa humana, cidadania, não discriminação, inviolabilidade da vida, liberdade, igualdade, proibição da tortura, saúde, etc. Como alguém teria a desfaçatez de invocar tais preceitos para defender a legalização do aborto? Isto só é possível porque o conteúdo desses preceitos foi completamente esvaziado, de modo que viraram palavras-talismãs que só se prestam a embelezar falsos discursos; porém, o que temos aqui é algo pior: esses valores, que são fundamentais e verdadeiros, não só perderam seu significado real, mas passaram a ser usados para a defesa de atrocidades diametralmente opostas ao sentido de cada um deles. É inacreditável que o direito à vida seja invocado para negar o direito à vida do nascituro; do mesmo modo, custa-nos crer que alguém use a proibição da tortura exatamente para submeter à tortura um ser humano inerme, que emite um grito silencioso ao ser acossado pela tesoura cirúrgica que o retalha.
A tese central da ADPF 442 está calcada no princípio da dignidade da pessoa humana, segundo a lição do Ministro Luís Roberto Barroso, para quem a dignidade humana comporta três vetores: valor intrínseco, autonomia e valor comunitário. Valor intrínseco é ter valor simplesmente porque se é humano, por pertencer à espécie humana; autonomia é ter autodeterminação, ser capaz de executar um projeto de vida; valor comunitário diz respeito aos valores sociais ou interesses estatais que podem respaldar a dignidade e consequentemente restringir a autonomia da mãe que pretende abortar. De início, o nascituro já não preenche nem o primeiro requisito: embora os autores da ação o reconheçam como criatura humana, o “estatuto de pessoa constitucional” lhe é negado, pois só teria direito a esse status quem nasce com vida. É surpreendente que, em meio à pletora de princípios invocados pelo PSOL, estejam a igualdade e a não-discriminação, usados para justificar uma completa inversão de seu conteúdo: a criação artificiosa de uma desigualdade discriminatória e arbitrária entre seres humanos – entre os nascidos e os não nascidos.
É assim que, num teste de proporcionalidade, o nascituro sempre perde contra a mãe que quer abortá-lo, já que, como não tem status de “pessoa constitucional” (protegida pela Constituição) e tampouco autonomia, ele não tem nenhum direito fundamental; portanto, ele é descartável. Numa ponderação entre a sua simples humanidade e a coleção de direitos que sua mãe ostenta, ele sempre sai perdendo e então vira lixo hospitalar.
Logo, o nascituro não é pessoa e não tem nenhum direito, muito menos o direito à vida – o mais fundamental dos direitos, sem o qual nenhum outro direito pode ser exercido. Conquanto tal afirmação nos deixe perplexos, ainda não estamos diante da faceta mais assustadora da besta, à qual me referi no início. Olhando mais de perto os fundamentos da ação, veremos que não há nenhuma razão para que toda essa construção argumentativa se aplique somente até a décima segunda semana de gestação. Ora, se só aqueles que nascem vivos têm direitos fundamentais, o aborto deveria ser legalizado até o nono mês; mas não é tudo: se a dignidade humana requer, além do valor intrínseco do humano, a autonomia e o respaldo de um valor comunitário, logo, as portas estão abertas para a futura legalização do assassinato de pessoas já nascidas que não tenham autonomia (bebês, doentes e deficientes, por exemplo) e de pessoas destituídas de valor comunitário, como já aconteceu inúmeras vezes na história. Negros, judeus, cristãos e tantos outros grupos já foram considerados sem valor para o Estado ou para a sociedade. O que impede que isso volte a acontecer?
Como, segundo a ação, para que alguém goze de dignidade humana é necessário que esta seja respaldada por um “valor comunitário”, a prevalecer este postulado, as portas estarão abertas para a futura legalização não só do aborto irrestrito, mas também da eutanásia, do “aborto pós-nascimento” e até da eliminação arbitrária de pessoas que porventura tenham seu status de “pessoa constitucional” cancelado segundo a conveniência do momento ou segundo os caprichos de um tirano qualquer. Se já não tivéssemos visto essas barbaridades na história, muitos diriam que estou exagerando ou criando uma teoria da conspiração. A ADPF 442 é o passo final e decisivo dessa agenda macabra. Se alguém acha essa realidade muito distante ou improvável, recomendo a leitura do artigo “Aborto pós-nascimento: por que o bebê deve viver?”, publicado em 2013 no Journal of Medical Ethics. Segundo os autores, a mãe tem o direito de matar seu bebê recém-nascido em todas as hipóteses em que o aborto é permitido nos países que o legalizaram, como por razões sociais, psicológicas ou econômicas. O principal argumento é este: se já admitimos o aborto de uma criança no útero, por que não admitimos também após o nascimento? Se a mãe rejeita aquela criança por qualquer motivo, pode matá-la, já que o recém-nascido não é pessoa de pleno direito e é moralmente irrelevante, assim como o feto. A premissa é a seguinte: antes que se estabeleça um vínculo social e afetivo, o recém-nascido não tem o direito de viver. Os redatores da ADPF 442, embora mencionem o “valor comunitário” (o último dos três vetores), não discorrem sobre o tal, provavelmente porque preferiram evitar um debate muito “avançado” para a sociedade brasileira, que poderia ficar chocada com as conclusões que daí saíssem; no entanto, não é necessária uma longa reflexão para perceber que o critério do valor comunitário para que alguém tenha dignidade humana, se levado às últimas consequências, pode nos conduzir para o aborto pós-nascimento e até para a eliminação de pessoas que sejam consideradas sem valor para a comunidade, como já vimos na história humana.
Segundo Barroso, se houvesse um valor comunitário a favor da vida do nascituro, tal valor poderia impedir a legalização do aborto. Quando verificamos as estatísticas, descobrimos que 92% dos brasileiros não aceitam a completa legalização do aborto, segundo o Datafolha (2022). Além disso, os legítimos representantes do povo, membros do Poder Legislativo, já rejeitaram, negaram ou arquivaram inúmeros projetos de lei tendentes à legalização do aborto. Contudo, Barroso, num passe de mágica, faz sumir a vontade dessa esmagadora maioria com este raciocínio: a proteção da vida desde a concepção está baseada só em argumentos religiosos (o que não é verdade), os quais não encontram espaço nos domínios da razão pública. Portanto, como não podem ser aceitos no debate público, não se pode considerar que exista um consenso social sobre o tema. Além disso – afirma o ministro –, também não há um interesse estatal em coibir o aborto, já que o Estado não deve tomar partido nesse debate. Ora, vemos claramente a falsidade desse raciocínio, pois há evidentemente um fortíssimo consenso social e há também uma vontade estatal claramente manifestada por meio do Parlamento.
Na ADPF 442, o partido invoca precedentes da corte que já teriam reconhecido suas premissas e só pedem agora que se extraia a conclusão (legalização do aborto) por um imperativo de coerência. No entanto, essa conclusão é bem mais ampla e assustadora do que parece, vai muito além do que é pedido (aborto até as 12 semanas). A constatação não pode ser outra: a ADPF 442 é uma fraude, um cavalo de Troia, uma caixa de Pandora para a sociedade brasileira.
– Henrique Cunha de Lima é Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro
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