Lei em estado terminal: O mundo jurídico hierarquicamente contaminado
Eduardo Cabette analisa a perda de rumo no sistema jurídico provocada pelas ações dos tribunais superiores
Por Eduardo Cabette
Assistimos atualmente à total perda de rumo, sentido de moralidade, legalidade e autocontenção dos Tribunais Superiores.
Magistrados que se arvoram em investigadores e acusadores, mesmo quando se apontam como vítimas de algum ilícito. Desrespeito a regras do sistema acusatório, atropelo de normas constitucionais reescritas de acordo com as conveniências de momento. Imposição de censura por via judicial sem qualquer resquício de pudor, ainda reconhecendo o ato e afirmando que será apenas daquela vez, excepcionalmente, ciente de que o estado provisório de exceção sempre se convola em perpétuo. Violação descarada de prerrogativas dos advogados, distorcendo e limitando a chamada “ampla” defesa e o contraditório, sem falar no direito de informação. Invenção de novos Direitos Penal e Processual Penal cuja única dogmática consiste no arbítrio da autoridade.
Magistrados que comemoram não a realização pacífica e justa de eleições, mas a vitória de determinado espectro político. E não qualquer magistrado, mas os responsáveis pela fiscalização das próprias eleições. Que afirmam que “eleições não se ganham, se tomam” (sic) e que depois festejam com excitação terem conseguido derrotar a corrente política oposta em evento público. Que deixaram a autocontenção e a prudência de lado, esquecendo-se do ensinamento de que “mesmo o insensato passa por sábio, quando se cala; por prudente, quando fecha sua boca.” (Provérbios, 17, 28)
Julgadores que se apegam a narrativas, profecias autorrealizáveis e se manifestam fora dos autos e também neles, proclamando tudo isso e somente isso, sem qualquer fundamento jurídico palpável.
Decretos de prisões sem o menor fundamento, sem sequer crime apontado. Medidas cautelares executadas e mantidas da mesma forma. Desprezo a toda e qualquer atuação de advogados e a seus argumentos, quando muito indeferindo pedidos com decisões de poucas linhas mal alinhavadas.
Julgadores que proferem voto em casos nos quais eles mesmos estão sendo acusados de alguma irregularidade, sem sequer ficarem corados por não se darem, no mínimo, por impedidos.
Julgamentos de casos idênticos ou muito similares pelos mesmos magistrados com decisões opostas de acordo com alguma conveniência ou convicção de natureza ideológica e/ou política em total esquecimento do brocardo latino ubi eadem ratio ibi idem jus (onde há o mesmo fundamento haverá o mesmo direito).
Magistrados que se envolvem em discussões no exterior e ao serem xingados ou até supostamente agredidos (nem mesmo eles, mas seu filho adulto transformado pela imprensa em adolescente) naquilo que configuraria no máximo crime contra a honra e contravenção penal de vias de fato, levam o caso para o Tribunal Superior desprezando normas constitucionais de competência, atropelam as regras de extraterritorialidade, determinam buscas para apurar casos que não envolvem essa espécie de diligência (injúria e vias de fato) em nítida “fishing expedition” ou mesmo coisa pior, visando tão somente humilhar e intimidar as pessoas, e distorcem juridicamente toda a situação para afirmar que vias de fato e injúria constituem crime contra o Estado Democrático!
A imparcialidade e até mesmo a aparência de imparcialidade jogada fora como um entulho, uma espécie de pedra no meio do caminho.
Isso tudo e muito mais é constatável cotidianamente nas decisões e ações proferidas pelos nossos Tribunais Superiores que contam com a conivência silenciosa e até mesmo com o apoio aberto de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e de juristas que outrora labutavam pelas garantias e direitos individuais constitucionalmente estabelecidos.
O resultado já por nós alhures antevisto vai se mostrando mediante um fenômeno de “contaminação hierárquica piramidal”. Os males vêm de cima, escorrem como por canaletas diabólicas e se espalham para as bases.
A “contaminação hierárquica”, sociologicamente falando, consiste no fenômeno pelo qual as relações de poder e autoridade de uma organização ou instituição se espalham ou se reproduzem em diversos níveis hierárquicos. Tal conceito demonstra como as dinâmicas e normas que passam a reger determinado nível hierárquico podem influenciar e afetar outros níveis inferiores.
É típico da “contaminação hierárquica” que as relações e práticas que se dão nos níveis mais altos acabem se espraiando e impactando os níveis mais baixos.
Não sem razão já vemos Juízes de Primeiro Grau, Promotores e Delegados de Polícia que claramente sequer leem razões apresentadas por defensores. Vemos pedidos de diligências, seja em Inquéritos Policiais ou em Processos Criminais sem apreciação, necessitando que petições se repitam para que sejam, um dia, apreciadas, muitas vezes já quando não há mais interesse ou viabilidade do pedido. Arrazoados complexos são apreciados e decididos em três ou quatro linhas onde apenas se veem os vícios da preguiça, da arrogância e um mal – disfarçado sentimento de onipotência com a autorização para fazer o que se quer e não o que a lei, a moral e a razoabilidade mandam.
Já não se trata mais de um problema de natureza jurídica, mas de uma patologia que vai contaminando Judiciário, Ministério Público e Polícia e as perspectivas de cura são cada vez mais remotas quanto mais o mal escorrega de cima para baixo na pirâmide hierárquica.
Enfim, este não é somente um artigo jurídico, mas um diagnóstico e, infelizmente, talvez, um prognóstico.
— Eduardo Luiz Santos Cabette é delegado de polícia aposentado, mestre em Direito Social, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em cursos de graduação, pós-graduação e preparatórios.
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