Guerra: Armênia e Azerbaijão ou Turquia e Rússia?
Entenda o pano de fundo histórico e os jogos políticos atuais que estão por trás do confronto entre armênios e azeris
Um assunto mal resolvido na década de 90 converteu-se em guerra no último fim de semana de setembro. Armênia e Azerbaijão estão declaradamente em guerra depois de muitas ameaças nos últimos meses. As terras de Nagorno-Karabakh são o cerne da atual disputa entre dois povos, que têm péssimas relações há séculos.
A região é um ponto de tensão geopolítica desde a queda do Império Otomano. Ambos os países são ex-repúblicas soviéticas com uma situação de delimitação de fronteiras incerta. Os contrastes étnicos e religiosos entre armênios e azeris dão um tom mais dramático ao conflito, mas também há grandes interesses de esquemas globais de poder de blocos divergentes, que usam ambos os países como peões.
Povos antigos têm memórias antigas, e elas não se apagam facilmente. Numa parte do mundo que abriga nações com origens que se fundem aos mitos fundadores do Ocidente e do Oriente Médio, nenhum movimento político é raso e baseado em meras relações de interesses comerciais. Entenda o pano de fundo histórico e os jogos políticos atuais que estão por trás do confronto.
Contexto histórico
Apesar de a moderna República da Armênia ter começado a se estruturar apenas no início do século XX, a Armênia, como nação, data do século VII a.C. Sua primeira dinastia, a dos Orôntidas, governou a região que vai desde parte da atual Turquia até o atual Azerbaijão, e seus descendentes expandiram seus domínios até parte do Eufrates, na fronteira com a Síria.
Sabemos que os armênios já eram etnicamente bem definidos desde o século I a.C., ou até anteriormente, pois ao longo da existência de seu reino eles foram sucessivamente invadidos por impérios que visavam o controle da Eurásia e, mesmo durante os períodos em que perdiam sua independência, mantinham uma unidade cultural baseada num forte senso de nacionalismo. No ano de 301, antes de Constantino, em Roma, pensar em se batizar, os armênios já eram oficialmente uma nação cristã; foram o primeiro país a decretar o cristianismo como religião oficial.
Entre várias invasões muçulmanas e mongóis na Idade Média, por fim os armênios perdem totalmente sua independência no século XVI, quando o Império Otomano e o Império Safávida, ambos islâmicos, porém um formado por tribos turcomanas e outro por persas, dividiram a Armênia e reduziram o status social dos armênios cristãos a uma semiescravidão. Finalmente, entre 1813 e 1828, a Rússia conquista a última porção de resistência armênia: a cidade de Erevan e as terras de Nagorno-Karabakh.
O Azerbaijão, por sua vez, nunca possuiu uma unidade étnica ou estatal ao longo da Antiguidade e Idade Média, sendo que as terras que hoje compõem o país, incluindo o exclave de Naquichevão, já foram parte do antigo Reino da Armênia. A formação do povo azeri é basicamente o resultado de uma invasão cultural de persas e turcomanos islamizados que se miscigenaram com alguma parcela de população armênia. Os azeris estão majoritariamente no Irã, onde habitam uma região iraniana também chamada Azerbaijão, e formam lá uma população de cerca de 20 milhões, contra os quase 9 milhões que vivem na República do Azerbaijão. São muçulmanos xiitas e falam um idioma de raiz túrquica, a língua azeri.
Entre o fim do Império Otomano e os primórdios da União Soviética, tanto a Armênia quanto o Azerbaijão organizaram-se em repúblicas independentes. Entretanto, havia um problema: as terras do Alto Carabaque, chamadas localmente de Nagorno-Karabakh, ficavam encravadas no território reclamado pelo Azerbaijão; porém, sua população era constituída por 95% de armênios. Não houve muito tempo para resolverem disputa, pois a União Soviética anexou tanto a Armênia quanto o Azerbaijão e a vizinha Geórgia em 1922, formando a República Federativa Socialista Soviética Transcaucasiana.
O período soviético, de início, parecia ser um alívio diante do terror que os armênios sofreram no Império Otomano, mas com a ascensão de Stálin ao poder, as perseguições recomeçaram, a Igreja começou a ser cerceada e o terror comunista ceifou milhares de vidas e gerou um grande êxodo armênio, sendo o Brasil um dos portos-seguros para muitos que fugiam do socialismo russo.
Os azeris e demais minorias étnicas que viviam dentro da URSS também sofreram neste período, e não há uma competição de quem sofreu mais; porém, os azeris estiveram protegidos e alinhados ao Império Otomano durante os séculos em que a Armênia era massacrada por este estado islâmico, culminando no Medz Yeghern, o genocídio armênio, entre 1915 e 1923 negado até hoje pelos turcos, herdeiros dos otomanos. Essa situação impede, na prática, um aprofundamento nas boas relações dos armênios com os azeris.
Guerra do Nagorno-Karabakh de 1992-1994
Com o enfraquecimento da União Soviética, as nações do Cáucaso começaram a organizar suas independências. Até 1988, a região de Nagorno-Karabakh era umOblast autônomo dentro do Azerbaijão porém, totalmente habitado por armênios. No início dos anos 1980 a ideia de Nagorno-Karabakh juntar-se à Armênia começou como uma pauta política sem confrontos armados, inclusive votada em referendo pela população local e aprovada por maioria. Entretanto, devido a não aceitação da pauta pela então República Soviética do Azerbaijão, iniciam-se algumas revoltas entre os armênios. Para sufocar as rebeliões, o governo azeri, influenciado pelo movimento político Frente Popular do Azerbaijão, impõe um bloqueio ferroviário e aéreo à Armênia como retaliação. Essa medida levou a Armênia a um caos de desabastecimento, pois cerca de 85% de seus produtos e mercadorias chegavam através do tráfego ferroviário.
É nesse contexto que se inicia a primeira Guerra do Nagorno-Karabakh. Entre 1988 e 1991, houve vários confrontos, mas foi em 1992 que a guerra estourou. No ano seguinte, a Turquia aderiu ao bloqueio contra a Armênia em apoio ao Azerbaijão. Mesmo em sérias dificuldades, a Armênia conseguiu se impor militarmente e antes do final de 1993 já controlava todo o Nagorno-Karabakh. O cessar-fogo veio em maio de 1994; Arménia, Azerbaijão e Rússia reuniram-se em Moscou e assinaram um acordo de não-agressão; porém, a situação do enclave não ficou resolvida.
A Armênia criou o Estado do Artsaque para controlar a área reclamada, estado que, em tese, seria independente, porém, um protetorado armênio. Na prática, o Artsaque é uma extensão da Armênia. O Azerbaijão não reconhece qualquer legitimidade do Artsaque e considera o Nagorno-Karabakh como Azerbaijão de jure, apesar de que quem controla toda a região de facto é a Armênia, desde 1991. A população do enclave continua sendo 95% armênia. A ONU não reconheceu a vitória armênia, considerando a integridade do território azeri, sob um tremendo lobby da Organização para a Cooperação Islâmica.
Desde o cessar-fogo assinado na Rússia, constantemente houve escaramuças entre as tropas rivais. O ápice da tensão foi uma espécie de ultimato do Azerbaijão em julho deste ano, quando eles ameaçaram bombardear uma usina nuclear armênia caso estes não se retirassem definitivamente das montanhas do Carabaque.
O início do novo conflito
Na manhã de 27 de setembro, domingo passado, a trégua foi rompida definitivamente pelo Azerbaijão, que atacou o exclave de Nagorno-Karabakh por terra e ar, tomando o controle de cinco aldeias. Apesar de ainda não haver confirmação do governo azeri, muitas fontes no Leste Europeu e no Cáucaso afirmam que boa parte do material bélico era turco; entretanto, o Azerbaijão já comercializou equipamento militar com Israel também. De qualquer forma, a Turquia está abertamente apoiando o Azerbaijão; algo já esperado.
A Armênia, por sua parte, conta com bases militares russas em seu território, e Putin já ofereceu apoio militar, solicitando que a vizinha Geórgia permitisse a passagem de aeronaves militares russas por seu espaço aéreo, algo que, até o fechamento dessa matéria, ainda não havia sido confirmado pela Geórgia. E, como no primeiro conflito nos anos 1990, a Rússia está tentando forçar um cessar-fogo e um acordo definitivo, ainda sem exposição pública dos termos, sobre a posse do Nagorno-Karabakh.
As relações da Rússia com ambos os países são antigas e complicadas. A Armênia, apesar das perseguições sofridas no governo de Stálin, gozou de certa liberdade religiosa e alguma autonomia nas décadas derradeiras da União Soviética, e com o fim do bloco comunista não houve um afastamento total, tanto que a Rússia sempre manteve presença militar lá. O Azerbaijão tornou-se membro da Organização para a Democracia e o Desenvolvimento Econômico, um bloco formada por Geórgia, Ucrânia, Azerbaijão e Moldávia, cujo objetivo é restringir as ações da Rússia nestes ex-territórios soviéticos ― a organização contou com amplo apoio americano na década de 1990 ―, o que o manteve distante do Kremlin e angariou alguma apoio da União Europeia.
Ironicamente, apesar da proximidade da Armênia com a Rússia e do Azerbaijão com o Ocidente, a Armênia sempre caminhou mais firmemente rumo á democracia e respeito às liberdades civis, enquanto o Azerbaijão é governado pela mesma família desde o período soviético: Heydar Aliyev foi chefe de departamento da KGB de 1954 até 1964, quando tornou-se vice-presidente da KGB no Azerbaijão, e em 1967 recebeu o posto de Major-General. Em 1969 foi o líder do Azerbaijão Soviético até 1982. Em seguida, foi primeiro vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS até sua suposta aposentadoria em 1987. Em 1990, Aliyev reaparece na vida publica azeri como um líder nacionalista moderado, propondo guiar o Azerbaijão rumo à independência. Torna-se presidente do país em 1993, reaproxima o país politicamente da Turquia e se afasta da Rússia. Ocupou o cargo até a morte, em dezembro de 2003, sendo sucedido por Ilham Aliyev, seu filho, que governa o país até hoje com uma constituição que não põe limites aos mandatos sucessivos do presidente; constantemente sob fortes acusações de fraude eleitoral, perseguição a minorias religiosas e étnicas e supressão gradual da liberdade de imprensa e acesso à informação.
Turquia e Rússia (ou, Otomanismo e Eurasianismo)
O presidente turco Recep Erdoğan não esconde seu entusiasmo pela ideologia do panturquismo, ou otomanismo ― a restauração dos territórios e glória do antigo Império Otomano ―, e desde a transformação da Basílica de Santa Sofia em uma mesquita, ele vem fazendo constantemente grandes demonstrações de poder, como nos conflitos recentes com o Chipre e a Grécia, a transformação de outros locais históricos cristãos em mesquitas e, agora, posa como uma espécie de Senhor da Guerra na questão do Nagorno-Karabakh, falando em nome do Azerbaijão, fornecendo apoio e material militar e interferindo diretamente nas negociações. Na última sexta-feira (2), Erdoğan disse que “não aceitará o envolvimento diplomático da Rússia, dos EUA ou da França, no conflito” e avisou que o cessar-fogo só ocorrerá com a Armênia retirando-se completamente da região.
A Turquia perdeu uma gigantesca área de influência no Oriente Médio após Donald Trump conseguir costurar o maior acordo de paz entre árabes e israelenses na História. Por não aderir ao acordo, a Turquia ficou isolada junto ao Irã em suas posições anti-Israel. Apoiar o Azerbaijão é uma forma de demonstrar poder e tentar reaver sua influência no mundo islâmico.
A Rússia, que está em plena retomada da política de reaver seus países amortecedores perdidos com a queda da URSS, também vê no conflito uma maneira de fortalecer seu papel político na Eurásia e, posando de pacificadora e defensora dos cristãos armênios, consegue angariar apoio da modesta porém crescente direita europeia anti-União Europeia, que insiste na tolice de ver Putin como um cristão conservador. O presidente russo pode estender mais sua influência no Cáucaso através da Armênia e pôr em xeque a Geórgia, com quem já esteve em guerra em 2008 ao inflar e apoiar militarmente os separatistas georgianos na Ossétia do Sul. Atualmente a Ossétia do Sul é um território da Geórgia ocupado pela Rússia. Há relatos de que Vladimir Putin, o pacificador, enviará mercenários do Grupa Vagnera para a região, os mesmos que recentemente foram usados para desestabilizar e depois tomar o controle na Bielorrússia.
A Turquia, que há poucos anos funambulava entre o bloco globalista-progressistas (União Europeia) e o projeto eurasiano-duguinista da Rússia decidiu de fato impor-se como um novo projeto de poder, tentando tanto alcançar tanto o bloco islâmico quanto os antigos territórios do Império Otomano. Fatalmente seus interesses iriam se conflitar com os da Rússia em algum momento, e talvez estejamos assistindo uma guerra by proxy.
O momento é oportuno para os poderosos: o mundo todo envolvido nesta muito conveniente crise sanitária realmente não prestará muita atenção em outra coisa além notícias sobre vacinas e sobre as crises financeiras que a crise sanitária gerou. A geopolítica oculta, enquanto isso, está emergindo e definindo-se, mostrando-nos que a queda do Muro de Berlim não foi o capítulo final da Guerra Fria.
― Brás Oscar é colunista e correspondente internacional em Portugal para o BSM
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