PÁTRIA EDUCADORA

Do crime tolerado ao crime obrigatório: como as instituições estão acabando com o Brasil

Lucas de Oliveira Fófano · 23 de Maio de 2024 às 14:55 ·

Não são as instituições que existem para o povo, como a água para o Batismo, mas o povo para as instituições, e essas é que nos mostram a verdade em um nível muito mais brutal do que o famigerado Ministério da Verdade

Será que somos capazes de imaginar como os hábitos moldam o pensamento das pessoas? Não é de hoje que tenho na lembrança, apesar de não saber sua origem, a frase “Quando não se vive como se pensa, acaba por pensar-se como se vive.” E eu acho que posso ver isso na realidade (isto é, tenho a capacidade de ver a verdade dessa frase) quando me lembro que nas ‘colonha’ onde vivi e convivi quando criança existia um tipo mágico de atmosfera religiosa entre os roceiros.

Era comum um grandioso espírito de partilha, de fraternidade genuína, de comunhão e de religiosidade expressa nos atos cotidianos, na divisão da labuta e nas novenas feitas em toda aquela fileira de casas que mais pareciam um grande pomar sem nenhuma divisão que não fosse a parede do próprio quarto.

Mas o mais surpreendente de tudo isso era que essa atmosfera, invisível e extremamente poderosa, moldava o pensamento de todas aquelas pessoas. Não estou dizendo que eram santas, mas ao menos eram capazes de acreditar na existência do lobisomem e, por isso mesmo, eram capazes de acreditar que o mal existia e que o demônio era tão real quanto a cascavel que vivia debaixo dos pés de laranja. E por moldar o pensamento, moldava também o comportamento. Os casamentos duravam tanto quanto a vida das pessoas, as famílias eram numerosas numa época em que tal adjetivo sequer existia (imaginem, chamar de “família numerosa” o que antes era apenas... família, seria como agora falar sobre as laranjas suculentas), o trabalho era visto apenas como uma parte da vida das pessoas e não como sua plena realização daí que o caipira não entrava em depressão como hoje entra a mulher moderna quando adia a gravidez para fazer carreira e o coroamento do dia era feito quando aquelas mãos calejadas manuseavam com cuidado quase místico aquele cercadinho de pequenas contas. Mas as coisas mudaram. E mudaram, ao que me parece (sempre ao que me parece) quando conhecemos algo chamado “institucionalização”, uma palavra grande demais para ser dita por um caipira e horrenda demais para ser suportada por ele.

Foi a geração dos meus pais aquela que nasceu no auge do movimento dito científico e que eu considero como mitológico no sentido mais baixo do termo a primeira que teve contato com a escola e a primeira a descobrir que são os lactobacilos que azedam o leite e que são os morcegos que embaraçam trançam as crinas dos cavalos, pendurados para lamber sangue e, o mais surpreendente, nada disso é façanha do Saci Pererê. Acontece que, ao chegar em casa, essa geração já não mais acreditava em sacis e lobisomens e a mula sem cabeça foi aos poucos sendo soterrada junto com as serpentes falantes e a arca do dilúvio. Boom! A autoridade foi transferida do núcleo familiar para uma instituição chamada escola e que responde a uma outra chamada ciência.

Agora, imaginem dizer, como São Simeão, que a água foi criada para o Batismo e que, ao contrário do que pensamos, não fomos nós quem nos adaptamos para viver com base em água mas que é a própria água quem nos dá a vida em muitos sentidos.

Isso é, hoje, inconcebível. E inconcebível porque não são as instituições que existem para o povo, como a água para o Batismo, mas o povo para as instituições, e essas é que nos mostram a verdade em um nível muito mais brutal do que o famigerado Ministério da Verdade. É inconcebível imaginar que a imagem contrária ao evangelho da caridade não seja uma propaganda, pois Cristo errou ao nos orientar que a mão esquerda não saiba nada das benfeitorias da direita. Onde já se viu questionar que uma foto sorridente em meio a um monte de cestas tripulantes seja o maior gesto de heroísmo da face da terra? Onde já se viu questionar os atos de uma das três maiores instituições do Brasil quando declaram nulidade de condenações de inocentes que nem sequer cometeram o crime de pensamento?

As instituições não existem para o povo. Somos nós, o povo, que existimos para as instituições. São elas quem nos guiam, quem nos dão a vida, quem nos defendem dos horrores da falta de burocracia. São elas quem nos sustentam e nos salvam e não há possibilidade de ser diferente, pois a repetição da intervenção em nossa própria imaginação levará apenas a três cenários possíveis: extinção da oposição; aceitação por meio da dissonância cognitiva; ou adaptação ao possível e normal (um tipo de coisa que vejo ocorrer entre nós, católicos, quando normalizamos o mal comportamento e deslocamos para o perfeito o comportamento normal e para o improvável a busca pela santidade).

O que aconteceu quando mudamos aquela atmosfera religiosa por uma outra, institucional, burocrática, taxativa, perseguidora e despótica? O crime, neste país, já foi condenado. Depois passou a ser tolerado. Hoje é incentivado e amanhã será obrigatório.

— Lucas Fófano é católico, professor, editor literário e caipira.

 


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