DIÁRIO DE UM CRONISTA

100 dias de prisão: Um conto de terror da ditadura brasileira

Paulo Briguet · 17 de Maio de 2024 às 15:36 ·

Uma carta ao preso político Filipe G. Martins, preso injustamente por uma viagem que ele não fez

Filipe,

Hoje você completa 100 dias de prisão. No dia 8 de fevereiro, agentes da Polícia Federal, a mando de Alexandre de Moraes, entraram na sua casa e o conduziram para a cadeia. Uma semana depois, sem que a sua família ou seus defensores fossem informados, você foi transferido para uma das piores penitenciárias do Paraná, onde o jogaram numa solitária, sem luz elétrica e sem as mínimas condições de higiene. No interior da masmorra de 5 metros quadrados, tudo que você podia ver eram as manchas de sangue nas paredes. Você permaneceu nessa solitária por 72 horas. Quando me contaram isso, lembrei-me imediatamente do bunker sem luz em que os nacional-socialistas aprisionaram o Padre José Kentenich em 1942, com o objetivo de enlouquecê-lo. Não conseguiram fazer isso com o padre, não conseguiram fazer isso com você. Quando você saiu da solitária, estava abatido e exausto — mas não derrotado.

Na carta que escreveu para a Anelise, você deixou isso muito claro: “Não vai haver delação, porque não há o que delatar”. Na mesma carta, você cita o exemplo de Sócrates, que preferia sofrer uma injustiça a ter que cometer uma injustiça. Esse pensamento do mártir da filosofia pode ser encontrado no diálogo “Górgias”, de Platão, na passagem em que Sócrates debate com um demagogo chamado Polo:

Sócrates: O maior dos males vem a ser praticar uma injustiça.

Polo: Esse é o maior? Não é o maior o sofrer a injustiça?

Sócrates: Absolutamente não.

Polo: Assim, pois, tu preferes sofrer uma injustiça a praticá-la?

Sócrates: Eu não quereria nem uma nem outra coisa; mas se fosse imperioso ou praticar ou sofrer uma injustiça, eu preferiria sofrê-la a praticá-la.”

(Górgias, 469 b-c)

O motivo da sua prisão — segundo Moraes — foi uma viagem que você teria feito para Orlando, nos Estados Unidos, juntamente com Jair Bolsonaro e sua comitiva, em 30 de dezembro de 2022. Ora, já está rigorosamente provado que você não fez essa viagem. Não há registros de sua presença no Aeroporto de Orlando. A Latam já informou que você e sua noiva estavam no voo Brasília-Curitiba na tarde do dia 31 de dezembro. O que o Moraes acha que você é, Filipe? O Padre Pio, que tinha o dom da bilocação?

Você não fez essa viagem. A própria PGR admitiu que as evidências contra você são frágeis e pediu a sua soltura. Mas, ainda que tivesse feito a viagem, não estaria cometendo crime algum, pois não havia nenhum mandado ou investigação em curso sobre você. Da mesma forma, não havia nenhum motivo para que você se escondesse no Brasil. Tanto é que você não se escondeu: fixou residência em Ponta Grossa, a cidade de sua noiva, realizou os procedimentos para obter um cartão de crédito na cidade, permaneceu todo esse tempo no mesmo local, como comprovam os extratos do i-Food que você pedia em casa. Tudo isso foi registrado. Durante todo esse período, você só saiu de Ponta Grossa uma vez, quando foi visitar uma plantação de lavanda em Carambeí... a 20 km. Estranho comportamento de um criminoso que pretende se manter oculto!

Ocorre que Alexandre de Moraes exige de você algo que, na essência, ninguém pode oferecer: a prova negativa. Você é obrigado a provar que não fez alguma coisa. O problema é que, se algo não aconteceu, nunca poderá ser provado. Não por acaso, os juristas chamam a prova negativa de prova demoníaca.

Você chega ao seu 100º dia de prisão sem que tenha havido oferecimento de denúncia, sem que haja qualquer motivo que justifique a sua privação de liberdade, sem que seus advogados saibam exatamente do que você está sendo acusado. Entre todas as aberrações já produzidas pelo regime PT-STF depois do golpe da soltura de Lula, creio que a sua prisão é a maior, a mais bizarra e a mais injusta. Se você está preso, Filipe, qualquer um de nós poderá estar preso também. E, de certa maneira, nós estamos. Quem garante que amanhã a polícia do regime não vai bater em minha porta exigindo a prova negativa de algo que eu não fiz?

Gostaria de encerrar essa carta com um registro para as gerações futuras. Quando alguém, daqui a alguns anos, se puser a analisar as atrocidades cometidas pela atual ditadura, vai deparar com um gesto de heroísmo dentro do caos e da degradação moral reinantes: refiro-me à sua decisão por escolher o Dr. Sebastião Coelho como um de seus advogados de defesa. Todos nós sabemos que o Dr. Sebastião é visto como um inimigo do regime PT-STF. Ao escolhê-lo como defensor, você provou que não está preocupado consigo mesmo, mas com o país. Em vez de optar por algum tipo de entendimento com o regime, você decidiu enviar uma mensagem clara para que todos saibam o que estamos vivendo e o que ainda teremos de enfrentar.

Eu não sei quanto tempo vamos precisar para sair deste pesadelo, Filipe. Não sei se teremos de esperar 10, 20, 50 ou 100 anos. Mas estes 100 dias me ensinaram que, acima de tudo, nós precisaremos de gente que tenha coragem de dizer como Soljenítsin:

“Que a mentira venha ao mundo. Que ela até triunfe — mas não por meio de mim”.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"



ARTIGOS RELACIONADOS