CRÔNICA

Um girassol na tragédia

Especial para o BSM · 8 de Maio de 2024 às 15:59 ·

Da catástrofe do Rio Grande do Sul, emerge um dos fundamentos da vida humana sobre a Terra: o amor ao próximo
 

Por Gabriel Roriz

O Pe. Paulo Ricardo disse certa vez, em homília, que tragédias acontecem — se Deus as permite — porque delas podemos extrair algo de bom, como os girassóis que podem nascer da lama. Como encarar isso diante da calamidade terrível que assola o Rio Grande do Sul?

Em um dos vídeos, uma criança, o pai e um cachorro estão no telhado, com o rio lamacento à altura das telhas… ondeante e terrível. O helicóptero de socorro se aproxima e estira a escada. O telhado, porém, não resiste à força da correnteza e desaba, imergindo, num único instante, a família inteira, a esperança, o futuro.

Em outro, uma senhora, cuja cabeça fora d’água é tudo o que podemos ver em meio à enchente avassaladora, é levada pela força das águas. Os espectadores, gritando “Segure em uma árvore!”, assistem à agonia… impotentes.

Outro — são tantos, meu Deus! —, em áudio, narra que estava num barco socorrendo algumas crianças, quando uma delas lhe pediu: “Tio, pode pegar aquela boneca na água pra mim?” Ele disse que sim e quando a tirou da água, percebeu que era o corpo já sem vida de um bebezinho...

Uma quantidade assustadoramente alta de famílias, de todas as classes sociais, tiveram as suas vidas viradas do avesso... precisando se abrigar em cima de telhados! Fico me perguntando como foram essas madrugadas escuras, de vento, de frio, a céu aberto. O que se passou (e se passa agora), meu Deus, no coração desses pais que viram seus filhos sendo levados pela correnteza implacável?

No meio de tanta tristeza, porém, emergiu no Brasil uma nova disposição de espírito, essa que é a sustentação de toda a vida, de todas as sociedades, e que nos ampara neste vale de lágrimas: a caridade desinteressada. A disposição de aplacar a angústia dos nossos irmãos, que é a finalidade última da raça humana.

Como exemplo disso, o professor Thomas Giulliano deu início a uma captação despretensiosa de recursos, o que já havia feito noutras ocasiões de infortúnio, tendo como meta inicial a arrecadação de 20 mil reais. Porém, seu movimento começou a ser impulsionado e recomendado por tantas pessoas, que ele se tornou, de repente, o líder de frentes de socorro em 21 cidades e já alcançou 1,8 milhão de reais (até agora). Ele escutou o chamado e foi à guerra. Interrompeu suas aulas, deixou esposa e filhas, e está agora em trincheira ao lado de tantos outros, a resgatar nossos irmãos gaúchos e a reerguer o estado do Rio Grande do Sul.

Professor Thomas, você diz que a sua missão é dar mais Brasil aos brasileiros. Saiba: nunca recebemos tanto Brasil como agora, porque a nossa nação — ainda como relapso aluno, posso dizer: — foi fundada por homens como o senhor. Homens de coragem e sacrifício. Homens de fibra! O exemplo é a maior pedagogia de um professor. Anchieta sorri. Antônio Vieira sorri. Osorio sorri. Caxias sorri. Nabuco sorri. Bonifácio sorri. Isabel, a Redentora, sorri. Por quem os sinos dobram?

Aqui em Maringá, como em diversas cidades de todo o país, há uma movimentação fora do comum. Havia um engarrafamento no trânsito para se chegar até o corpo de bombeiros, onde os militares recebiam — de uma multidão — a doação de suprimentos básicos (escovas e pastas de dente, fraldas infantis e geriátricas, sabonetes, rolos de papel higiênico, alimentos não perecíveis), roupas infantis e adultas, instrumentos de socorro, helicópteros, jet ski, caminhões…

Pablo Marçal, Nego Di, Giovanna Mel, Renata Barreto, Whindersson, Badin, Luciano Hang, Luísa Sonza, Dunga, arquidioceses, comunidades, e milhões de anônimos estão entrincheirados pelo Rio Grande do Sul, passando por cima das diferenças, numa prova de amor ao próximo, de verdadeira valorização da vida e de sincera fraternidade — valores tão aviltados em nosso tempo.

Duas forças poderosas estão atuando sobre o Sul do nosso país: a força da natureza, com toda a sua violência, e a força de Deus no coração dos homens, com toda a sua magnanimidade abnegada. As águas levaram tudo o que muitas pessoas possuíam. Agora, o fogo dos corações faz com que muitos abram mão dos seus bens, conforto, segurança para dar consolo a outros corações. Não é pouca coisa o que está acontecendo no palco da Terra.

Se, infelizmente, milhares tiveram seus bens devastados e suas vidas perturbadas, há também, nos quatro cantos do país, milhares que se levantaram do sossego, do privilégio, voluntariamente, doando seus recursos e oferecendo suas orações, por amor a uma multidão de desconhecidos, tornando o fardo dessa angústia um pouco mais leve. 

Cada coração conta; cada decisão amorosa conforta o mundo inteiro. O Brasil nunca mais será o mesmo. Sairemos mais fortes dessa tragédia. Seremos o país que não foi indiferente diante do sofrimento extremo. O país que, apesar dos políticos, não banalizou o mal. 

O que estamos testemunhando nessa tragédia é a semeadura de um campo de girassóis nas trincheiras do Rio Grande do Sul.

Gabriel Roriz é católico, casado e coordenador-geral da Invisible.

— Doações para a trincheira do professor Thomas: [email protected] (chave pix)

 

 

 


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