ALTA CULTURA

Quem é o herói (e quem não é)

Brás Oscar · 3 de Maio de 2020 às 21:12 ·

Sérgio acordou cedo e foi se despedir da mulher. Beijou-a e disse que era o dia

“Zeus poderoso, e vós outros, ó deuses eternos do Olimpo,
que venha a ser o meu filho como eu, distinguido entre os Teucros,
de igual vigor, e que em Ílio, depois, venha a ter o comando.
E que, ao voltar dos combates alguém diga, ao vê-lo: ‘É mais
ainda, que o pai!’ E possa a mãe veneranda à sua vista alegrar-se
pós ter matado o inimigo, pesado de espólios cruento.”

(Ilíada, Canto VI)

Todo mundo quer ser herói. Queremos os louros e nos convencemos que o esforço é pelo bem que recairá sobre todos. Poucos, porém, querem as manchas de sangue e lama na espada e na capa. A gente quer ser herói pragmático e com selo do Inmetro, sem fanatismos. Já somos bem acostumados a devorar um pernil e esquecer convenientemente que alguém precisou caminhar num chiqueiro e se sujar de sangue para termos o nosso deleite.

O herói real deveria estar disposto a pôr a mão na sujeira, não para se refestelar na lama, mas para revelar à luz aquilo que estava coberto no lodaçal. Ele deveria desafiar as previsões, não temer os sortilégios do inimigo, apesar de saber que há a ação do sobrenatural na História; e é nesse ponto, na transcendência, que a força do herói encontra seu combustível.

Ele transcende porque não faz o que faz apenas por si, mas por um senso de que foi predestinado e capacitado para fazer aquilo. Heitor nunca buscou apenas glória, ele lutou e morreu por sua família e seu povo, mas pleno da “aretê”, um termo grego geralmente traduzido como virtude, mas que reflete um senso de “fazer o que eu nasci pra fazer nem que isso me custe  a vida”.
Aquiles era também pleno desse senso grego de “estar ali para cumprir seu destino com excelência”. Ele lutou por fama e glória, mas só foi capaz de lutar realmente com o coração na batalha quando o seu querido Pátroclo morreu pelas mãos de Heitor. 

Mas o herói verdadeiro da Ilíada é Heitor, e não se trata de uma reinterpretação de Homero, mas desde o medievo era assim que as tradições de cavalaria o viam. Os Nove da Fama, como eram chamados no Livro do Armeiro-Mor de Portugal, é o nome de uma lista tradicional dos nove maiores heróis que serviram de padrão para o ideal de cavaleiro. A lista era dividida em três trincas: os três pagãos (Heitor de Troia, Alexandre Magno e Júlio César), os três judeus (Josué, o Rei David e Judas Macabeu) e os três cristãos (o Rei Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão). Não é Aquiles, que sacrificou um amigo, mas Heitor, que sacrificou tudo,  o modelo do herói, um homem disposto a morrer, não por um mundo melhor; mas sim pelas indignas, porém valiosas vidas ordinárias.

No Brasil nosso de cada dia, distante brutalmente de qualquer código de cavalaria, há uma necessidade pulsante de transformarmos as figuras mais insossas em heróis. Serve tudo: jogador de futebol, médium espírita, ator de novela, funcionário público ou qualquer liberal limpinho com arzinho de doutor que acene condescendentemente para duas ou três pautas do povão.

Somos um povo que une-se num sentimento de pai ausente — o brasileiro típico é o moleque criado sem pai que se apega emocionalmente a todo cara mais velho que sai algumas vezes pra jantar com a mãe dele —, um povo empolgado, meio jeca e meio malandro, presos numa sketch infinita do Hermes e Renato onde o aldrabão que se der bem no final será nosso arquétipo de Ulisses, nosso Leopold Bloom versão pornochanchada.

A história do herói clássico é conflito puro; há sempre duas forças concorrentes que o esmagam: o destino já escrito e a vontade proporcionalmente contrária de algum poderoso. Porém, o que soluciona essa tensão é a força sobre-humana, capaz de abrir um atalho entre as rochas duras das circunstâncias, mas sempre às custas do sacrifício.

Só que não existe senso de sacrifício no lado de baixo do Equador, meus queridos. O país do “farinha pouca, meu pirão primeiro” recompensa o safo, o impostor: o paladino dos caboclos é concursado; o herói positivista tropical pensa que é um Dom Quixote que bate ponto, um técnico cumprindo solenemente sua função, respeitando as instituições e zelando por sua imagem.

Sérgio acordou cedo e foi se despedir da mulher. Beijou-a e disse que era o dia. Ela, em prantos, pergunta-lhe se ele quer que ela se torne uma viúva escrava das ONGs que fazem parceria com seu escritório de advocacia. Sérgio ri e consola a esposa:

— Sei que me arriscarei, mas prometo voltar vivo.

— Tem certeza?

— Sim, mas se acaso derem cabo de mim, dirão de ti: eis a viúva de Sérgio, que foi o mais nobre guerreiro. 

— Cuidado com o que vai dizer àquela gente, amor! Você tem uma biografia a zelar!

Sérgio arruma o nó da gravata e ambos se despedem, mas não antes fazer suas súplicas:
 
“Universo poderoso, e vós outros, caciques eternos do Senado,
que venha a ser o meu filho como eu, distinguido entre os liberais,
de igual rigor, e que em Brasília, depois, venha a ter o comando.
E que, ao voltar das entrevistas alguém diga, ao vê-lo: ‘É mesmo
a fuça do pai!’ E possa a mãe socialite a sua conta aumentar
após jantar com inimigo e assinar acordos opulentos”.

 

Brás Oscar é escritor, colunista e apresentador do BSM. Autor de O Mínimo Sobre a Queda da Europa

 


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