GEOPOLÍTICO

Precisamos falar sobre o Paquistão...

Eduardo Meira · 16 de Fevereiro de 2023 às 16:18

País asiático passa por uma crise política e econômica sem precedentes. O que o Brasil pode aprender com a tragédia paquistanesa?

 

 

 

 

 


Um país pouco mencionado e bem pouco conhecido em terras tupiniquins é o Paquistão. Trata-se de uma república islâmica, parlamentar e que se caracteriza por já ter sido disputada por vários povos como os hindus, indo-gregos, muçulmanos, turco-mongóis, afegãos e sikhs. Foi ainda colonizada pelo Império Máuria indiano, o Império Aquemênida persa, o Império de Alexandre, o Califado Omíada árabe, o Império Mongol, o Império Durrani, o Império Sikh e — o que o trouxe finalmente o formato atual — o Império Britânico. Grosso modo, com o fim da colonização inglesa, o Paquistão veio como resultado de uma partilha da Índia britânica: os hindus ficam aqui (Índia) e os muçulmanos ali (Paquistão). Mais tarde o Paquistão ainda sofre uma guerra interna de secessão, que deu origem a Bangladesh. A população é em número muito parecida com a brasileira: 220 milhões de habitantes. Mas as semelhanças com o Brasil não param por aí.

No início da década de 90, o Brasil passava por um momento econômico terrível, à beira da falência, e as entidades financeiras mundiais como o FMI obviamente se recusavam a fazer empréstimos para um país em que não confiavam. O Paquistão passa, neste momento, pelo mesmo problema. Além dessas, outras semelhanças com o Brasil acabaram por motivar esse artigo: a mudança de curso de um grande rio — no Paquistão, o Indus; no Brasil, o São Francisco — e suas consequências e, infelizmente, a política de submissão dos atuais governos com a China — e suas duras consequências.

Lembrando que o Paquistão é um importantíssimo player na geopolítica mundial, vive em estado de guerra com a Índia e Bangladesh, possui bombas nucleares e tem histórico de alinhamento com os EUA.

 

Paquistão à beira da falência

Uma comissão do FMI esteve no Paquistão nesta semana e foi embora sem fechar acordo. A comissão ficou 10 dias em Islamabad, a capital do país, negociando com a frente econômica recrutada pelo governo para conseguir o empréstimo. O pedido não foi relativamente tão vultoso: 1,1 bilhão de dólares. E é justamente o baixo valor do empréstimo que denota o desespero do país.

O país já se encontra em meio a um programa de resgate. O governo lançou um pacote de 6,5 bilhões de dólares para salvar a economia. Mas com a negativa do FMI, o pacote ficará inviável. O primeiro-ministro Shabbat Sharif disse, na semana passada: “Nosso desafio econômico é inimaginável e as condições do FMI que teremos que nos submeter são além da imaginação. Mesmo assim, teremos que aceitá-las”. Especialistas paquistaneses afirmam que, muito embora seja humilhante cair de joelhos e se humilhar frente ao Ocidente, não há mais nada a se fazer. E é aqui é onde a coisa esquenta.

Em muitos artigos desta coluna foi explicado, com riqueza de detalhes, o que significa a “armadilha do crédito chinês”. O Paquistão foi mais uma vítima. Claro, quem faz pacto com o mal é portador consciente da cobiça, da avareza e de mais uma lista tão imensa de pecados que nem se precisa mencionar. Todo país de regime autoritário acaba se implodindo, e o Paquistão não é diferente. Neste momento, Islamabad deve 30 bilhões de dólares à China e isso será mais detalhadamente desenvolvido no terceiro tópico deste artigo. Por agora é importante frisar que o genuflexório ante o Ocidente — do qual já obteve resgate 23 vezes, ganhando o título de “o primeiro lugar em país resgatado por empréstimos exteriores no mundo” — é porque já não há mais como recorrer ao Dragão asiático.

É muito claro que apenas o empréstimo do FMI não será suficiente. Ou seja, além de se submeter às condições do Fundo, como o aumento das contas de água, luz e demais tarifas públicas, lançar mão de política financeira de austeridade, frear a gastança do governo (que é centralizador, autoritário e esbanjador), terão que se virar com o rótulo de país caloteiro e conseguir mais empréstimos. Mas e os empréstimos passados, para onde foram? Esta é fácil. Para os Rolex dos líderes, seus Rolls-Royces e suas políticas populistas clássicas.

Pode ser o fim do Paquistão como Estado? Aparentemente, sim.
 

O Rio Indus

O Rio Indus é parte da personalidade paquistanesa, e flui do norte para o sul do país. Ele conta com uma série de canais, barragens e aterros além de outras mudanças de suas características naturais que começaram há séculos. Esse sistema, quando no início, transformou uma das regiões mais áridas do mundo em milhões de acres de fazendas, e também ajudou a moldar a precária relação do Paquistão com a água. Nos últimos 75 anos, a população daquele país cresceu cinco vezes, enquanto o suprimento de água caiu vertiginosamente, e as previsões são de que o país chegue à condição de escassez absoluta em 2025.

Mas o contraste é que o país também sofre de incessantes enchentes, que estão cada vez maiores e destrutivas, ceifando centenas de vidas. Esta crise dicotômica expõe o que acontece quando se passa dos limites no desafio à natureza.

As pequenas e necessárias adaptações de canais para irrigação feitas por agropastoralistas antigos, que viviam há séculos do cultivo de sorgo, legumes e arroz ao longo do rio, foram extremamente benéficas à região. A migração dessas populações era feita de acordo com as flutuações de maré do rio. Numa região tão árida, o rio — que é constituído por águas do degelo do topo de montanhas como o famosíssimo pico K2 e das pesadas chuvas de monções no verão — e seus afluentes proviam uma fonte singular de água, o que transformava a região em um verdadeiro paraíso.

Infelizmente, no século XIX, esse cenário começou a mudar. Foi o início da transformação moderna da bacia do Rio Indus, promovida pelos britânicos, que acabavam de vencer uma série de guerras e tomar o controle da região e transformaram tudo em parte do seu “Império Indiano”. A meta dos ingleses era manter a região o mais agricultável possível; passaram a construir canais mais largos, barragens gigantes e modificar todo o curso e o desenho da bacia. No intuito de irrigar toda a aridez regional, ignoraram completamente os fatores naturais como os degelos, as monções, o curso do rio, suas marés e suas mudanças de comportamento em cada estação do ano. Para se ter uma ideia, apenas uma das barragens, a Lloyd, que teve uma pomposa inauguração em 1932 e hoje se chama Barragem Sukkur, criou canais que irrigam mais de 3 milhões de hectares.

Estes projetos decretaram o fim de matas ciliares, florestas inteiras e biodiversidade, levando uma região árida e escassa a uma geografia parecida com a da Lua.

O mais lastimável é que mesmo depois do fim do colonialismo britânico, o governo paquistanês continuou levando o projeto em frente. Sem dúvida este é um dos maiores desastres ambientais de que se tem conhecimento.

 

A submissão à China

A China está provando ser um pesadelo para o Paquistão. Por conta de suas desavenças em comum com a Índia, os dois países tornaram-se aliados importantes. Em 2015, Xi Jinping fez um discurso memorável em Islamabad, elogiando a beleza do país, sua importância como parceiro fundamental na região, e prometeu mundos e fundos em financiamentos para infraestrutura e empréstimos para resgates econômicos. Estava montada a base para a arapuca.

Hoje o Paquistão deve 30 bilhões de dólares à China e é seu maior devedor bilateral no mundo.

O problema é que a China está passando por seus próprios desafios econômicos causados pelas políticas absurdas de restrição aos cidadãos e fechamento ao mundo (a tal política do covid zero), prejudicando a cadeia de logística e suprimentos de forma sem precedentes, além de uma crise econômica interna com o estouro da bolha imobiliária, corrida aos bancos, protestos contra novos pacotes econômicos, encolhimento populacional, o esforço de guerra contra Taiwan e demais fatores geopolíticos óbvios ao momento. O momento, para a China, é de bater de porta em porta cobrando as dívidas. Perdoar, postergar ou emprestar mais está fora de questão.

A forma de cobrança da China é a cereja do bolo. Ou da armadilha. Em alguns países, funciona apenas tomar a infraestrutura construída para si, passando a ser proprietária de terras, pontes, praças e estradas dentro de um país soberano. No caso do Paquistão, uma das “benfeitorias” chinesas foi a construção de linhas de suprimento de energia e a implantação estações de eletricidade para fornecimento ao país, através de um braço da iniciativa Cinturão e Rota chamado CPEC (China Pakistan Economic Corridor, ou Corredor Econômico China-Paquistão). Coincidentemente, no mês passado uma série de blackouts apagaram o Paquistão. Quase 220 milhões de pessoas foram afetadas. A propósito, esses apagões já vêm ocorrendo há mais de um ano. Quando a China corta o fornecimento, a rede elétrica paquistanesa é incapaz de suportar sozinha a demanda e acaba por colapsar. Em novembro passado, a China desligou ao menos 20 plantas de fornecimento de energia, simplesmente porque o Paquistão não as pagou.

 

Post-scriptum

Certa vez o Paquistão disse que iria “sangrar a Índia através de mil cortes”. Hoje a população do Paquistão é cada vez mais adepta à ideia de reunificação. O governo paquistanês está longe de pensar assim e nutre, como grande parte da população, ódio aos indianos. Fato é que hoje a Índia aposta no fim do Paquistão.

Para o mundo, um Paquistão fraco e amedrontado é um Paquistão perigoso, assim como um pequeno quati encurralado por um rottweiler. Mas este quati tem bombas atômicas. Em um momento onde uma escalada nuclear global não é mais obra de ficção, a crise do Paquistão é, certamente, motivo de preocupação

Este colunista espera que as semelhanças com do Brasil com o Paquistão sejam meras coincidências.


— Eduardo Meira é empresário, professor e poliglota, morou 4 anos na China e fala fluentemente português (nativo), chinês, inglês e espanhol, além de se comunicar em russo e francês para assuntos do dia a dia, e de arriscar diálogos em árabe.

 


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